domingo, 15 de setembro de 2013

Profecia - Livro 6







VI
Sentença que no Tribunal do Santo Ofício
de Coimbra se leu ao Padre Antônio Vieira
em 23 de dezembro de 1667


Acordam os inquisidores, ordinários e deputados da inquisição, que vistos estes autos, culpas, confissões e declarações do padre Antônio Vieira (religioso da Companhia de Jesus, natural da cidade de Lisboa, e morador nesta de Coimbra, réu preso, que presente está) porque se mostra, que sendo (como religioso, letrado e pregador) obrigado a dar bom exemplo, e a não inculcar, acreditar e publicar pessoa alguma por dotada de verdadeiro espírito de profecia, nem por certas e infalíveis suas predições, sem preceder aprovação e licença da santa sé apostólica, ou de seus ministros; nem a detrair das letras e inteireza do santo ofício, e de seu reto e livre procedimento, principalmente em matérias tocantes ao mesmo tribunal, e cargos que nele se exercitam; e outrossim a não prognosticar absolutamente de futuro, e prometer coisas, cujos sucessos dependem só da vontade de Deus, no livre alvedrio dos homens; nem escrever ou proferir proposições heréticas, temerárias, malsoantes e escandalosas, e conformarse em tudo na inteligência e explicação da sagrada escritura, com o comum e unânime consenso dos santos padres e doutores católicos; sem para prova e persuasão das ditas predições, promessas, proposições e outras coisas ineptas, fabulosas e adulatórias, comparações e encarecimentos, perverter e adulterar o verdadeiro sentido em que a mesma escritura deve ser entendida e explicada, sem a torcer violentamente a intentos particulares, e muito menos nos sermões que fazia, por ser o púlpito lugar destinado pela Igreja para dele se ensinar sã e católica doutrina, com que os ouvintes se edifiquem e não pervertam:

Ele o fez pelo contrário; e de certo tempo a esta parte (em grave dano, prejuízo e escândalo dos fiéis) compôs um papel intitulado Esperanças de Portugal, Quinto Império do mundo; cujo principal assunto é mostrar com várias razões e argumentos, que Gonsalianes Bandara, sapateiro da vila de Trancoso, fora verdadeiro profeta; e que conforme o que dizia em alguns lugares e predições de suas trovas era certo e indubitável, que muitos anos, ou centos deles antes da última e universal ressurreição dos mortos, havia de ressuscitar certo rei de Portugal, defunto, para ser imperador do mundo e lograr as grandes felicidades, vitórias e triunfos, que o mesmo Bandarra tinha dele profetizado, como largamente se contém no dito papel:

Do qual tendo-se notícia, não só no conselho-geral do santo ofício deste reino, mas também na sagrada congregação de Roma, e sendo visto e mandado qualificar em uma e outra parte, lhe foram censuradas algumas proposições, com nota de serem umas contra o comum sentido católico, fátuas, temerárias e escandalosas, outras que ofendiam os ouvidos dos pios e fiéis católicos; e eram errôneas e injuriosas aos santos padres, e escritura sagrada, e tinham sabor de heresia. A saber:

Primeira. Afirmar o réu no dito papel, que ainda há de haver quinto império no mundo, e ser dele imperador o dito rei defunto, depois de ressuscitado.

Segunda. Que pela introdução do dito quinto império, se há totalmente de extinguir o império romano, muitos anos antes da vinda do Anticristo.

Terceira. Que o dito Gonsalianes Bandarra fora verdadeiro profeta, alumiado por Deus com lume sobrenatural e divino; inferindo disto que em razão do que ele tem predito em suas trovas (acerca do império futuro do dito rei ressuscitado e das maravilhas que havia de obrar, e não obrou em vida) há de suceder com toda a certeza a dita resurreição particular, e outros futuros meramente livres e contingentes.

Quarta. Que isto mesmo, antes dele escrever o dito papel, havia ele réu afirmado publicamente em certa parte, e pregara também em uma ocasião, na qual o dito rei estivera de certa enfermidade desconfiado dos médicos, dizendo, que, ou não havia de morrer dela, ou se morresse, havia de ressuscitar, para dar cumprimento às ditas profecias, e maravilhas ainda não sucedidas, mas escritas, e prometidas pelo Bandarra a respeito do próprio rei.

Quinta. Que o Bandarra verdadeira e infalivelmente predisse as coisas futuras, livres, e contingentes; para o que lhe interpreta as suas trovas, depois do sucesso de algumas coisas, de modo que signifique aquele haver de ser, ou futuritionem, ou fore delas.

Sexta. Que sobre a última ilação que faz da resurreição particular da tal pessoa defunta, não só é discurso, senão ainda de fé; comprovando-o com o que diz São Paulo (Hebrae. XI-17) acerca da certeza que Abraão tivera de que seu filho Isaque havia de ressuscitar, no caso que com efeito o sacrificasse, suposta a promessa que Deus lhe tinha feito de fundar nele a sucessão de sua casa, e de outras felicidades; equiparando nisto o réu, em certo modo, com a verdade das promessas de Deus, a das trovas do Bandarra.

Sétima. Que crê e espera a ressurreição particular do dito rei defunto, e tem para si, que a verdadeira prova do espírito profético nos homens, e a regra dada por Deus no cap. 18 do Deuteronômio (Deuter. XVIII-22) para conhecer os profetas verdadeiros ou falsos, é somente o sucesso das coisas profetizadas.

Oitava. Que no tempo do império do dito rei ressuscitado, se hão de converter todos os judeus à fé de Cristo Nosso Senhor: Et fiet unum ovile, et unus pastor (Joan. X-16) e que assim há de durar o mundo por muitos anos.

Nona. Que no dito tempo hão de aparecer os dez tribos de Israel (Êxod. XIII) que desapareceram há mais de dois mil anos, sem se saber deles, e que o mesmo imperador ressuscitado os há de apresentar ao sumo pontífice; tratando o réu de provar o tal aparecimento com alguns lugares da sagrada escritura.

E assim em razão das ditas proposições censuradas, como de haver também informação do santo ofício, que o réu depois de compor o sobredito papel, afirmara em certa parte perante algumas pessoas, as proposições seguintes concernentes a mesma matéria; a saber:

Que depois de todo o mundo ser reduzido à fé de Cristo, há de durar mil anos, tendo Deus preso neles o Diabo (antes solto) para não tentar as gentes, como o deduziu do cap. 20 do Apocalipse (Apoc.XX - 1, 2 e 3.)

Que viverá o mundo em paz, à imitação do estado da inocência, sem guerra, e sem trabalhos; e que depois havendo de vir o Anticristo (Apoc. XX - 3) se tornará a soltar o Diabo, e virá o dia de juízo.

Que não era crível que Deus fizesse o mundo então sujeito a uma só cabeça: Unum ovile et unus pastor (Joan. X - 6) para logo acabar, antes que nos mil anos, sendo tanta a gente santa, se igualaria o número dos predestinados ao dos réprobos; que foi o que nos quis ensinar Cristo Senhor nosso na parábola das virgens (Mat. XXV - 2, 10, 11, 12 e 13), que sendo dez, cinco delas se perderam, e cinco se salvaram: não merecendo menos censura estas proposições, que as acima referidas, e conteúdas no dito papel do Quinto Império do mundo.

Pelo que foi o réu mandado aparecer pessoalmente na mesa do santo ofício; e sendo nela perguntado em geral, se dissera ou fizera alguma coisa de que lhe parecesse era obrigado a dar conta na Inquisição, e em particular se compusera o papel acima dito do Quinto Império do mundo, e se era o mesmo que andava nestes autos, e lhe foi mostrado? O réu o reconheceu por seu, e ser o próprio que tinha composto, e de certa parte mandado a certas pessoas, que declarou.

E depois de lhe ser lido, e se firmar o réu, em tudo que nele se continha, o escrevera, e mandara copiar, declarou mais, que de certo tempo a esta parte dissera em presença de algumas pessoas, que para neste reino se conhecerem (entre os da nação dos cristãos-novos batizados) quais eram os verdadeiros católicos, e quais os judeus, se lhes poderia conceder algum lugar, ou lugares deles, em que tivessem liberdade de consciência, e depois de reduzidos ao dito lugar ou lugares, e conhecidos por este modo quais eram os judeus, e quais os católicos, se tomaria resolução se convinha mais expulsar do reino os que fossem judeus, ou conservá-los nele: mas que isto dissera quando o permitisse a consciência, e o aprovasse a sé apostólica.

Que em cinco ou seis sermões que pregara em certa parte (por ocasião das pestes e guerras que então havia na Europa, e sucessos menos felizes neste reino) pregou vários castigos e felicidades futuras, que estavam para vir sobre a Igreja Católica, conforme diversos lugares da sagrada escritura, e exposição dos doutores e santos padres sobre os mesmos lugares, e isto a fim de mover a contrição e penitência aos ouvintes.

Que de mais de vinte anos a esta parte, andava estudando e compondo um livro que determinava intitular - Clavis Prophetarum - cuja principal matéria e assunto, é mostrar por algumas proposições com lugares da escritura, e santos padres, que na Igreja de Deus há de haver um novo estilo diferente do que até agora tem havido, em que todas as nações do mundo hão de crer em Cristo Senhor nosso, e abraçar nossa santa fé católica; e há de ser tão copiosa a graça de Deus, que todos, ou quase todos que então viverem, se hão de salvar, para se prefazer o número dos predestinados; na qual suposição, feita na forma que ele declarante a tem disposta, se ficam correntemente entendendo as profecias de todos os profetas canônicos, assim da lei velha, como da lei nova.

E que quanto ao novo estado da Igreja romana há de durar primeiro muito tempo.

E que a respeito de falar em algumas felicidades da mesma Igreja, lhe havia também de ser forçoso tratar de alguns castigos futuros, que ela ainda deve ter, segundo a inteligência e exposição mais comum dos santos padres e doutores católicos, sobre certos lugares do Apocalipse, e outros profetas.

E por se entender e esperar do réu (conforme a sua profissão e letras), que se lhe constasse que as sobreditas proposições do papel do Quinto Império haviam sido censuradas pelos ministros do santo ofício, e a censura de que eram merecedoras as mais de que novamente estava indiciado, e tinha dito não queria persistir na defesa de umas e outras; antes, como fiel católico e verdadeiro religioso desistiria, e se retrataria assim das mesmas, como de tudo o mais que naquela matéria tinha escrito, proferido e pregado, se lhe deu plenária notícia do peso e qualidade das ditas censuras e qualificações dos ministros da sagrada congregação do santo ofício de Roma, e dos deste reino, declarando-se-lhe não só que o dito papel fora censurado absolutamente por fátuo, temerário, escandaloso, injurioso, sacrílego, piarum aurium ofensivo, errôneo, sapienti a heresia; senão também as proposições particulares sobre que a censura de cada uma delas caía respective.

E logo sendo o réu perguntado se queria estar pelas ditas censuras, conformando-se com elas; ou, se, pelo contrário, persistia no que afirmava no dito papel, e no mais que tinha dito, e assim o queria sustentar e defender? E admoestado com muita caridade, que respeitá-las e obedecê-las, além de ser sua própria obrigação, era o que mais lhes convinha para descargo da sua consciência, e poder alcançar o bom despacho, que se lhe desejava dar em seu negócio, o qual assim ficava findo, e reduzido aos termos do inviolável segredo da inquisição:

Respondeu, e disse: que, sem embargo desta admoestação e advertência, se resolvia a querer explicar as ditas proposições, e a escusar as censuras que se lhes tinham postas, sem ele réu ser ouvido na defesa do que diz no dito papel, e razões que teve para assim o dizer, e requeria se lhe desse vista de todas as proposições e suas censuras, para lhes responder, e que se sobre as suas respostas o santo ofício resolvesse que as tais censuras ficavam ainda na sua força e vigor, estava ele réu sujeito e obediente ao que lhe fosse mandado, como bom e fiel católico que era.

E vista a desacertada resolução e desobediência do réu, se toi continuando sua causa na mesa do santo ofício. E sendo examinado em algumas sessões, que com ele se tiveram, por cada uma das sobreditas proposições, e perguntado especialmente pelos fundamentos e razões que tivera para as proferir, pregar e escrever, disse:

Que sabia ser sentença de alguns padres e teólogos, que o império romano há de durar até o fim do mundo; porém que a ele réu lhe parecia que o sobredito Quinto Império, de que se trata, se havia de principiar com a extinção do de Alemanha, nomeado romano na casa de Áustria, e será o mais católico, que nunca houve, começando quando se acabar o do turco (que não durará muitos anos) e continuando-se este Quinto Império até a vinda do Anticristo, e fim do mundo.

Que tinha para si, e cria, que as trovas do Bandarra foram escritas com revelação de Deus, e que anteviu e predisse as coisas futuras, contingentes e dependentes do livre alvedrio, entendendo muitas delas e predizendo-as não ex corde suo, nem sem espírito profético; porque os efeitos e circunstâncias particulares, de que trata, se não podiam entender, antever e conhecer por nenhuma certeza humana, principalmente sendo preditos tantos anos antes.

Que não fora sua intenção comparar, nem equiparar as promessas do Bandarra com as de Deus; e somente dizia, que a ilação que tirava das ditas promessas do Bandarra acerca da ressurreição particular do dito rei defunto, era semelhante e do mesmo gênero à que São Paulo tirou das promessas de Deus feitas a Abraão; e que além das trovas do dito Bandarra, de que tirava a ilação do dito rei haver de ressuscitar, se moveu também a tê-lo por provável, e as mais coisas por ele preditas nesta matéria, por combinarem com lugares da sagrada escritura explicados por bons doutores, e por predições de santos e pessoas que têm opinião geral de falarem com espírito profético, a saber: S. Francisco de Paula, S. Metódio e outros:

Que não tivera licença alguma da sé apostólica e ordinário para divulgar por verdadeiras profecias as trovas do Bandarra, por lhe parecer que não necessitava dela, suposto o consentimento tanto universal dos prelados eclesiásticos deste reino aonde se imprimiram, e principalmente porque não propôs as ditas trovas e promessas do Bandarra por verdadeiras e infalíveis absolutamente, senão conforme a aceitação ordinária, e pela certeza e probabilidade moral, que costuma fundar-se no discurso humano.

Que sabe muito bem, que segundo a doutrina dos santos padres, e o que consta da sagrada escritura, que não basta faltar aos sucessos alguma coisa predita, ou cominada por alguns profetas, para ser tido por não verdadeiro; mas diz, sem embargo disso, que se os sucessos fossem de tantas coisas e tais, que não possam ser antevistas por entendimento criado, essas bastam para qualificar o verdadeiro espírito de profecia; e que ainda que alguns doutores sigam o contrário, têm por opinião mais provável, que basta um sucesso das coisas profetizadas para constituir algum verdadeiro profeta, e assim entende que é regra dada por Deus no cap. 18 do Deuteronômio, como também afirma, que bem pode uma pessoa ter espírito profético e iluminação profética e verdadeira, ainda que prediga coisa que não contenha doutrina sã e católica.

Que tem para si, fundado em muitos lugares da sagrada escritura, e santos padres, que com efeito se hão de reduzir à fé todos os judeus e gentios; e suposto que tem visto muitos autores que ensinam haver de ser esta conversão geral por meio da pregação de Elias e Enoque, depois da vinda do Anticristo; contudo, conforme vários lugares da sagrada escritura, e doutrina de outros autores, tem por sem dúvida, ou por mui provável, haver de ser a dita conversão antes da vinda do Anticristo por meio de pregadores evangélicos.

Que suposto o que tem visto na sagrada escritura, e muitos expositores dela, e em outros autores da cronologia e história sagrada, lhe parece que estão ainda hoje no mundo os dez tribos de Israel (4. Esdr. XIII - 39, 40 e seg.) e que hão de aparecer algum dia, subindo do lugar onde estão além do rio Eufrates para as partes orientais, a fim de todos se converterem à fé de Cristo, e que nesta suposição e na de que com efeito há de ressuscitar o sobredito rei defunto (pelos fundamentos que já tem dito naquele papel) lhe parece também coisa provável, que poderá apresentar (como pessoa escolhida por Deus para propagação da nossa santa fé católica) os mesmos dez tribos a sua santidade.

Que nunca lhe pareceu que nos mil anos, ou muitos mil que o mundo há de durar, depois de reduzido à fé (antes da vinda do Anticristo) há o Demônio absolutamente deixar de tentar os homens; e somente entendia que se hão de moderar muito as suas tentações, e crescer também os auxílios da graça divina, de modo que quase todos os que então viverem se salvem, para prefazer o número dos predestinados.

Que crê, e tem para si, que não há de haver mudança alguma no estado da Igreja, acerca de ser governada sempre pelo sumo pontífice, vigário de Cristo; mas que conforme o que tem lido nas escrituras e doutores, lhe parece há de vir tempo em que a mesma Igreja floresça muito mais em virtude, e tenha um estado muito mais excelente na perfeição, do que de presente tem, dando-lhe seus prelados e pastores muito mais reformados e santos, como havia na primitiva Igreja, com cujo exemplo toda ela se reforme; o qual novo estado começará quando acabar o império do turco, e durará por muito tempo com a dita maior perfeição, dilatação da fé, redução universal do mundo todo a ela, e paz também universal entre os príncipes católicos, segundo se deixa ver de alguns lugares da escritura.

E porque no sobredito cap. 20 do Apocalipse se acham repetidas vezes as palavras: Per annos mille (Apoc. XX - 23, 3, 4, 5 e 6) dissera ele réu às pessoas com quem falara nesta matéria, que o evangelista dizia, que o dito tempo da duração das felicidades da Igreja, havia de ser de mil anos.

Que os castigos que a própria Igreja há ainda de ter lhe parece hão de ser por meio da invasão e cruel guerra dos inimigos da fé; os quais tem por mais provável serão os turcos, entrando por Alemanha; pois é certo que no Apocalipse está profetizada a destruição de Roma, que, conforme a explicação mais comum dos doutores e santos padres, não é alguma das passadas.

Que a dita Roma há de ser abrasada, e a causa dos ditos castigos há de ser a pouca reformação e zelo de alguns prelados eclesiásticos, e que também será possível entrar neste número algum ou alguns pontífices no tocante àquelas coisas em que como homens podem errar.

E porque o réu nestas respostas, razões e fundamentos com que procurava modificar e reduzir suas proposições a sentido católico e corrente, e desmerecer a graveza e deformidade das ditas censuras, tão fora esteve de o conseguir, que de novo incorreu em outras de igual ou maior nota; tornou a ser por multiplicadas vezes em várias sessões admoestado, com muita caridade, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo, quisesse desistir de querer sustentar temerariamente o que dizia nas proposições e respostas acima referidas, que só por não ceder da sua opinião, tinha afirmado contra a verdadeira doutrina da Igreja e santos padres, conteúda nas sobreditas censuras e qualificações do santo ofício, e nos exames que nele lhe foram feitos; ao qual todo o fiel cristão é obrigado a sujeitar-se e render o próprio juízo nas matérias de fé e bons costumes, quais são as de que nas ditas proposições se trata: sendo-lhe muito em particular e especial declarado o que acerca de cada uma delas devia ter e seguir, conforme o que consta da sagrada escritura, e comum entender dos santos padres e doutores católicos; e era:

Que o Quinto Império do mundo (com cujo título quis animar as esperanças de Portugal, e dar princípio ao dito papel que compôs) há de ser o do Anticristo, entre o qual e o quarto dos romanos, que de presente existe, nenhum outro há de haver até o dia do juízo, segundo a tradição antiga da Igreja, desde o tempo dos sagrados apóstolos, e comum inteligência dos doutores e expositores da mesma escritura em alguns lugares dela; e que assim o prometer no dito papel outro Quinto Império, e que deste haja de ser imperador (com extinção do romano, mil, ou muitos mil centos de anos antes da vinda do Anticristo) o sobredito rei ressuscitado, era temerário, escandaloso, piarum aurium, ofensivo, errôneo, e contra a mesma tradição da Igreja.

Que para uma pessoa ser verdadeiro profeta, e por tal denominado, não basta só predizer alguns futuros contingentes e livres, e sucederem assim como os predisse; mas é também necessário que primeiramente, e demais do mesmo sucesso, aquilo que a tal pessoa predisse, se funde na autoridade de Deus revelante, que é o objeto formal do conhecimento profético; e que além disto contenham as revelações e profecias omnino a certeza de doutrina sã e católica; e que assim não constando a ele réu, que estes requisitos concorressem no Bandarra, e suas trovas, nem se achando nelas a dita certeza de sã e católica doutrina, antes o contrário tanto a respeito do que dizem alguns versos contra o dos ditos santos padres com notável propensão e favor do judaísmo, quanto por usar nas mesmas trovas de palavras confusas, dúbias, e perplexas, das quais tira cada um depois de algum sucesso o sentido que mais lhe serve para aplicar a seu intento; o dizer e persistir, em que o próprio Bandarra foi verdadeiro profeta alumiado por Deus, e que verdadeiramente predisse as coisas futuras, livres e contingentes, interpretando-lhe os seus versos de modo que signifiquem o ser futuro das tais coisas; era temerário, fátuo, escandaloso e errôneo.

Que assim também era escandaloso, errôneo, e com sabor de heresia equiparar com a verdade das promessas de Deus, e o mais das sagradas escrituras, sumamente certas e infalíveis (e com a ilação que a este respeito fazia delas São Paulo acerca de haver ou não haver Isaque de ressuscitar) as promessas e trovas do Bandarra, e inferir a futura ressurreição da sobredita pessoa de uma maior falsa e menor não verdadeira, avaliando-as por de fé quando as mesmas trovas têm suspeita de judaísmo, como fica dito, e se deixa bem ver e entender do santo ofício as proibir, e depois as não deixar imprimir.

Que em o réu as propor e divulgar por verdadeiras e indubitáveis profecias, havidas por um profético sobrenatural e divino, sem primeiro serem examinadas e aprovadas pela Igreja e seus ministros, incorria também nas mesmas penas e censuras impostas por direito e breve apostólico, neste caso.

Que posto seja comum sentença dos santos padres e doutores católicos, que antes da conversão geral dos israelitas hão de vir à fé católica todas as gentes em todo ou em parte, deduzindo-a do lugar de São Paulo - Quia excitas ex parte contigit in Israel, donec plenitudo gentium intraret, el sic omnis Israel salvus fieret (Rom. XI - 25 e 26) contudo de nenhum modo se podia, sem manifesta ofensa da escritura sagrada, dizer e afirmar, como o réu dizia e afirmava, que também no mesmo tempo de mil anos contínuos, antes do Anticristo e conversão dos gentios, havia de ser a conversão geral dos judeus; pois conforme muitos lugares da Escritura Sagrada (explicados pelos santos padres e doutores católicos, e a constante tradição da Igreja) a dita conversão universal dos judeus há de ser em virtude da pregação dos santos profetas Elias e Enoque depois da morte do Anticristo, e já junto ao fim do mundo; o que (além da certeza indubitável da escritura sagrada, e autoridades dos santos padres) se convence com uma razão evidentíssima, pois sendo de fé, que os judeus hão de crer e receber o Anticristo como lhe disse o Senhor: Ego veni in nomine Patris mei, et non acciptis me: si alius venerit in Domine suo, illum accipietis: (Joan. V - 43) claro fica, que até à sua vinda não hão de estar geralmente convertidos, nem hão de ter Cristo Senhor Nosso por verdadeiro Messias, como necessariamente se requeria se já todos fossem também cristãos: e portanto, querer ele réu, que a dita conversão e redução geral dos judeus haja de ser não por meio daqueles santos profetas, senão pelos pregadores evangélicos, mil, ou muitos centos de anos antes da vinda do Anticristo, não só era temerário e errôneo contra o dito texto de São João, que a letra diz o contrário, mas injurioso aos santos padres e escritores antigos, e à Igreja que assim o deduz deles, e da escritura sagrada.

Que do mesmo modo era injurioso à Sagrada Escritura e Evangelho, escandaloso e sacrílego, dizer que no tempo do futuro império do dito rei ressuscitado, antes da vinda do Anticristo, hão de aparecer os dez tribos, para ele os apresentar, e introduzir ao sumo pontífice cristãos e triunfantes, como diz que o Bandarra descreve nas suas trovas: pois além do sobredito, conforme ao comum sentido dos santos padres e expositores, as profecias canônicas das felicidades temporais dos judeus foram promissórias e condicionais, com se vê no cap. 18 de Jeremias: Loquar de gente et de regno, ut aedificem et plantem illud. Si fecerit malum in oculis meis, ut non audiat vocem meam: poenitentiam agam super bono, quod locutus sum ut facerem ei: (Jer. XVIII - 9 e 10) a saber: se seus pecados lhas não impedissem, e Deus lhas não quiz cumprir todas em tudo, porque os judeus lhas não mereceram, pelo obex dos pecados em que caíram.

Que suposto seja certo que pela vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo ao mundo se moderaram as tentações do Demônio, como consta do Apocalipse; não se podia dizer sem erro manifesto, que no tempo do dito Quinto Império se hão de moderar de sorte, que todas, ou quase todas as pessoas que então viverem se hão de salvar; porque além da mistura dos bons e maus haver de durar, como os doutores declaram, até o fim do mundo, era muito suspeito de judaísmo guardar o réu para aquele tempo de mil anos tanta felicidade temporal, virtude e santidade do modo que os judeus pela doutrina dos seus Rabinos também afirmam, esperando semelhantemente, que no tempo do Quinto Império do seu Messias, muito antes do fim do mundo, hão de ser todos, ou quase todos santos, sem que as tentações do Diabo sejam tão fortes e livres, como as que agora faz ao gênero humano.

Que muitos santos da primitiva Igreja, principalmente a Virgem Maria Senhora Nossa, o glorioso S. José, S. João Batista e os santos apóstolos, são tão incomparavelmente avantajados em merecimentos, virtudes e santidade a todas as mais criaturas, que comparar e igualar com eles os santos que o réu prometia e esperava no tempo do Quinto Império, e dizer que com aqueles futuros prelados muito santos se há de reformar a Igreja, era temerário, e tirado de algumas chamadas revelações que, mandadas examinar pela santa sé apostólica, as não quis aprovar, antes as proibiu, por parecerem mais sonhos e delírios que revelações verdadeiras.

Que pelo determinado número dos mil anos de que no Apocalipse se trata acerca da ligação do Demônio, se deve entender conforme a comum explicação dos santos padres e doutores, o número indeterminado dos anos que correm desde a morte de Cristo Nosso Senhor até a vinda do Anticristo, e fim do mundo, e não pelo tempo que depois de acabar o império do turco, dizia o réu há de suceder e durar a redução universal do mundo todo, judeus e gentios à fé, e paz geral entre os príncipes cristãos.

Que ainda que, segundo o comum sentir dos santos padres, esteja no Apocalipse profetizada a destruição de Roma, sem ser alguma das que já teve, e que há de ser abrasada em castigo das perseguições passadas que nela se moveram à Igreja, no tempo em que a dita cidade foi governada pelos gentios; contudo era erro inescusável e suspeito de judaísmo atribuir a dita destruição à cruel guerra e entrada do turco por Alemanha e Itália com a extinção do império romano quando começar o dito rei ressuscitado; quando aliás a comum inteligência dos mesmos padres e expositores é, que o tal incêndio e destruição de Roma há de ser no tempo do Anticristo ou proximamente a ele, e não muitos anos antes, quando for o do Quinto Império, como o réu dizia, e os judeus tambem afirmam há de suceder no Quinto Império do seu Messias.

E porquanto sem embargo destas admoestações e notícias que se deram ao réu das censuras que as suas proposições tinham tido no Santo Ofício, e de ser de novo advertido e exortado, que deixasse respeitos humanos, que o podiam impedir, e tratasse do descargo de sua consciência, e reconhecendo a força da razão e fundamentos das ditas censuras e das mais admoestações, que na mesa lhe foram feitas, quisesse estar por elas, e conformar-se com a verdadeira e católica doutrina que continham.

O réu o não quis fazer, antes se deixou ficar na mesma persistência e pertinácia do que tinha escrito, proferido e declarado, repetindo somente o protesto verbal de estar pelo que a inquisição determinasse depois de vistos os fundamentos que o moveram a proferir e escrever as ditas proposições, por lhe haverem sido tomadas em diferente sentido daquele em que ele as escrevera, e proferira, ficando por este modo as censuras caindo sobre as proposições alheias, e não sobre as próprias dele réu. Pelo que:

Veio o promotor fiscal do santo ofício com libelo criminal acusatório contra o réu, que lhe foi recebido: Si et in quantum; e o réu o contestou pela matéria de suas confissões e declarações, e veio com defesa por seu procurador, que outrossim lhe foi recebida, oferecendo em prova dela um papel que andava compondo em abono das ditas proposições, e descargo das ditas censuras que no santo ofício lhe haviam dado.

E depois de passados os primeiros nove meses sem que o réu apresentasse em juízo o dito papel, ou apologia que tinha oferecido em defesa ou prova dela, desculpando-se com o impedimento de alguns achaques, e outras ocupações, lhe foram esperados mais quatro meses para o acabar, com cominação de ser lançado fora da dita prova da sua defesa, se dentro deles não enviasse, ou trouxesse o dito papel à mesa do santo ofício.

E porque sendo esperado por ele mais outros quatro meses o não trouxe nem enviou, se lhe mandou pedir, declarando-se-lhe finalmente, que não o dando, com efeito sem isso se sentenciaria a sua causa.

E querendo o réu mostrar a diligência, que acerca disto tinha feito, veio à inquisição, e nela presentou trinta e tantos cadernos de folha de papel, que mostravam serem já alguns escritos há muitos anos, e outros depois de principiada esta causa, nos quais ia continuando a dita apologia, que sendo mandados ficar, e vistos em mesa, e outrossim outro que de novo escreveu acerca da mesma matéria, e o enviou ao conselho-geral do santo ofício; se achou conterem outras muitas proposições dignas de mais grave e rigorosa censura, que as passadas, as quais tenazmente tentava defender, sem atenção ou respeito algum à verdadeira e católica doutrina das sobreditas qualificações e exames que no santo ofício lhe tinham feito, procurando com toda a eficácia encontrar diretamente uma e outra coisa, dizendo nas tais proposições:

Que constava e era coisa clara, que o império de Cristo e dos cristãos (que será o quinto e último do mundo) não há de ser depois senão antes do Anticristo.

Que aquele tirano soberbo, poderoso e blasfemo, que se há de levantar contra o Altíssimo e contra os seus santos (isto é, contra os cristãos) do qual se trata na sagrada escritura (Dan. VII - 24 e 25) não há de ser o Anticristo senão o turco, como se mostra de muitos lugares da sagrada escritura; dos quais se vê, que primeiro há de ser vencido o turco, e logo lhe há de suceder o império de Cristo, e depois deste se há de seguir a perseguição e vinda do Anticristo, e dia do juízo.

Que quando na escritura e capítulo 2.° de Daniel se diz, que os quatro metais da estátua de Nabuco, ou as quatro monarquias significadas neles ficaram desfeitas em pó, e desapareceram voados do vento, sem se achar mais lugar em que estivessem (Dan. II - 35), não quer dizer que as terras, cidades e gentes das ditas monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente, como há de acontecer a todo o mundo no dia de juízo; senão que havia de acabar seu mando, seu poder e seu império, como verdadeiramente se acabou o dos assírios pela sucessão dos persas, o dos persas pela sucessão dos gregos, o dos gregos pela sucessão dos romanos, e se acabaria também o dos romanos pela sucessão do Quinto Império.

Que o império de Cristo não só é espiritual, mas também temporal, e o mesmo império universal que hão de ter os cristãos na terra em que entrarão a ser incorporados todos os reis cristãos e reinos do mundo; pois se a carne de Adão, que Cristo tomou, não foi de Adão pecador, senão de Adão inocente; por que, como advertiu o apóstolo (Rom. VIII - 3) tomou a carne e não contraiu o pescado? E se Cristo não foi Filho de Adão escravo, senão de Adão Senhor, por que causa não reteria ao menos o que não perdeu em seu Pai?

Que todas as terras e todas as gentes são herança de Cristo; mas que não há de entrar de posse desta herança senão para o tempo que Deus for servido, porquanto ainda que desde o instante da sua encarnação foram suas quanto ao domínio, não serão suas quanto à posse senão no tempo que Deus tem determinado, expondo em prova disto as palavras do salmo 2° de Davi: Postula a me, et dabo tibi gentes haereditatem tuam, et possessionem tuam terminos terrae. (Sal II - 8)

Que sabendo algumas pessoas o que ele réu tinha dito acerca do Bandarra ser verdadeiro profeta, e da ressurreição particular do dito rei, que tirou de suas trovas, creram que verdadeiramente havia de ressuscitar; mas que muitas também zombaram por não serem capazes disso, porque o pouco conceito que temos de nossa terra, e dos nossos tempos, nasce de uma apreensão verdadeiramente falsa, ou demasiada, que é a altíssima estimação e admiração que fazemos desta graça, gratis data, que se chama profecia, a qual estimação e admiração é sem dúvida muito maior do que devíamos fazer, e que Deus quer que façamos dela.

Que se tem comumente por certo que o Bandarra tinha parte de nação hebréia, e fora chamado ao santo ofício, e não só preso nele senão condenado e penitenciado; e posto que do último não constasse, bastava só a fama e opinião para fazer não somente duvidoso, mas suspeitoso tudo o que por outra parte se publicava, e crê de seu espírito; porém que depois do Bandarra ser examinado no santo ofício, não lhe fora proibido que falasse do que dantes falava, nem que escrevesse ou mandasse escrever o que ditava, nem que a lição dos seus escritos, assim de mão como impressos, fosse vedada: e dado que seja certa a fama de que foi condenado pelo santo ofício, donde consta que o não pudesse ser por calúnias e falsos testemunhos?

Que se prova que o Bandarra verdadeiramente escrevera com espírito profético e verdadeiro.

Que sendo tão comum e universal o consenso, opinião e voz pública com que neste reino é conhecido, estimado e aplaudido por profeta, bastava para que não só se lhe deva conceder esta opinião, mas que sem escrúpulo se lhe não pode tirar, pois é fazer dano ao próximo in re gravi, privando-o da honra e fama, que legitimamente adquiriu, e de que está de posse.

Que necessariamente se devia dizer que o Bandarra não só foi movido por instinto de Deus, mas alumiado por próprio e verdadeiro espírito profético; nem se pode entender outra coisa conforme a doutrina dos teólogos e santos padres: e quem poderá duvidar que sabia muito bem, e conhecera muito distintamente o Bandarra, o que dizia de futuro, pois o dizia por termos tão claros e tão manifestos, como se vê em todo o seu livro, sendo mais claro que a luz do sol? Se me é lícito fazer esta comparação, digo, que nenhum dos profetas canônicos falou com tanta clareza.

Que sobretudo se devia advertir, que depois do réu haver expendido a diferença que há entre a profecia absoluta e cominatória, ou condicional, que dezoito vezes repetidamente diz Bandarra, que via as coisas futuras de que tratava; e sendo certo que as via, é também certo que não podem deixar de suceder, porque ainda que algumas de sua natureza fossem condicionais, suposto que foram vistas, segue-se que não interveio a condição, e que hão de ter efeito absoluto, porque de outro modo não podiam ser vistas.

Que todas as coisas estão preditas pelo Bandarra, e cumpridas até hoje (sendo tantas e tão grandes), ninguém as predisse nem profetizou senão ele, e que ainda que as que estão por cumprir sejam de igual ou maior grandeza, estão quase todas preditas na sagrada escritura; acrescentando o réu que se Bandarra no seu livro quisera compor uma declaração do credo, uma protestação da fé romana, uma apologia ou uma invectiva contra todas as seitas dos infiéis, e contra todas as espécies da infidelidade, não pudera dizer mais que o que disse em tão pequeno volume; e aqui fazia a exclamação seguinte: O quanto de melhor vontade examinara eu e refutara esta calúnia imposta ao Bandarra, argumentando do que escrevendo! E senão digam os autores, em que está a razão, força ou eficácia? Se são escrupulosos, em que está a aparência, dúvida ou receio? Mostrem alguma palavra, alguma letra, alguma sílaba, em todos aqueles toscos versos, que seja menos consoante, ou menos conforme à fé e à doutrina da Igreja católica.

Que até aos supremos tribunais de Roma, chegaram as forças da diligência, para ser proibida a lição do Bandarra, onde a distância podia escurecer a verdade, a diferença da língua a inteligência, e o afeto de certa nação a justiça da causa; e que assim como trataram de introduzir em Portugal a lição de Palafox, assim quiseram proibir a lição do Bandarra, e muito mais depois que o viram comentado, como quem receita o veneno, e veda a triaga; mas que debalde se cansará a emulação dos inimigos, e a lisonja dos que favorecem a mesma emulação, com quererem negar a fé ao profeta, se não podem negar a vista às profecias; pois nem às profecias haviam de tirar a confirmação, nem ao profeta o batismo; porque muito a seu pesar elas sempre hão de ser verdadeiras, e ele sempre cristão.

Que já hoje era doutrina muito comumente, recebida dos teólogos modernos, que para se crer nas revelações privadas, e ainda para as publicar, não era condição absolutamente necessária, serem propostas pela Igreja; e que basta que o objeto seja suficientemente proposto, e com tais circunstâncias, que o façam prudentemente crível.

Que muito mais forte, e muito mais evidente testemunho de serem verdadeiras profecias as do Bandarra, era o efeito e cumprimento delas que temos visto, do que seria se víramos, que o mesmo Bandarra, ou em vida, ou depois de morto, dera olhos a cegos, fala a mudos, e pés a coxos, e ressuscitara mortos em confirmação de suas profecias, porque o efeito das coisas profetizadas, não só era prova certa e infalível das profecias, senão que não há nem pode haver naturalmente outra prova certa e infalível da profecia, exceto o dito efeito.

Que quanto à sobredita conversão dos judeus, e maior santidade daquele tempo, se colhe do lugar de São Paulo aos romanos nestas palavras: Nam svitu ex naturali excisus es oleastro, et contra naturam insertus es in bonam olivam, quanto magis ii, qui secundum naturam, inserentur sua olivae? (Rom. XI - 24)

Porque se os cristãos convertidos da gentilidade, sendo raízes de árvore estéril e agreste, isto é, sendo filhos de infiéis e idólatras, só por serem enxertados na oliveira, isto é, só por serem unidos à fé dos antigos patriarcas e profetas (coisa que nos ditos cristãos era contra a natureza) vieram a conseguir tanta graça, tanto lume, e tanta santidade, e tanta perfeição, como se vê na imensidade de tantos varões eminentíssimos, com que todas as nações têm ilustrado a Igreja; quanto mais virão a ter aqueles, que, não contra a natureza, como os gentios feitos cristãos, mas naturalmente, se unirem outra vez à oliveira sua, e não alheia?

E que assim sendo a fé, a religião, a santidade nas outras nações, que antes de Cristo foram idólatras, não natural, mas contra a natureza, como lhe chama o apóstolo: contra naturam; e nos judeus que tantos séculos antes da vinda de Cristo já eram fiéis, sendo própria e como natural a mesma fé, a mesma religião, e a mesma santidade: secundum naturam; já se vê quantos maiores progressos farão nela depois de convertidos, e quanto mais copiosos frutos comunicarão as raízes nos seus ramos naturais, quando tem sido tanta a fertilidade dos enxertos e estranhos.

Finalmente (que é o principal intento do apóstolo), se aqueles em quem era natural a infidelidade, e a fé contra a natureza, se fizeram fiéis e tão fiéis; estes, scilicet, os judeus, nos quais a fé é como natural, porque a herdaram há tantos mil anos de seus avós; por que não serão tão fiéis como eles, e não só tanto, senão muito mais?

Que a segunda figura para provar o mesmo intento, fora a de Jacó, ao qual assim como depois de servir muitos anos por Raquel, lhe deram e recebeu por Raquel a Lia, dando ocasião a esta troca e mudança a escuridão da noite, e finalmente depois de desposado Jacó com Lia, se desposou também com sua amada Raquel, que era o primeiro fim por quem servia; assim da mesma maneira veio o Filho de Deus a este mundo, aonde serviu tantos anos para se desposar com a Igreja antiga, que então estava só no povo hebreu, que era o seu povo amado; porém por engano de Labão, que é o Demônio, e a escuridão da noite, que é a cegueira da incredulidade, não conseguiu os desposórios que pretendia da nação hebréia, e entrou em seu lugar a irmã mais velha, que era a gentilidade; porque primeiro foram no mundo os gentios, que os hebreus, e depois de Cristo receber de todo em sua casa as nações da gentilidade representadas em Lia, menos formosa, mas muito fecunda, então receberá também com muito maior alegria e contentamento a sua formosa Rachel, isto é, o povo judaico, que foi o primeiro preço dos seus trabalhos, e o primeiro cuidado e desvelo de seu amor.

Que lhe parecia dentro dos limites da probabilidade humana, que é coisa certa e moralmente sem dúvida haverem de aparecer os dez tribos de Israel; e que isto se não podia negar sem fazer grande força e violência a muitos textos da sagrada escritura.

Que a santidade que há de haver na Igreja reformada, igual à da primitiva Igreja, se prova do livro dos Cantares, e de uma profecia de S. Vicente Ferrer, e que há de ser antes do Anticristo, e que se hão de converter os gentios e judeus todos, entrando na dita reformação da Igreja todos os membros e partes dela, e principalmente o imperador e o pontífice.

Que a sobredita duração da Igreja, e felicidade que há de ter em seu último estado, se prova também na parábola do pai de famílias, e operários do Evangelho, chamados para a sua vinha nas palavras de São Mateus: Sic erunt novissimi primi, et primi novissimi: multi enim sunt vocati, pauci vero electi. (Mat. XX - 16) Devendo-se considerar duas diferenças de escolhidos, uns que são escolhidos entre os reprovados; outros que são escolhidos entre os escolhidos; e como estes últimos vieram na derradeira hora do dia, são figura daqueles que hão de vir no último tempo da duração do mundo, e no último estado da Igreja, em que ela há de ser santíssima e perfeitíssima, pela qual razão lhe não chama Cristo escolhidos em comparação dos reprovados, senão escolhidos em comparação dos escolhidos; porque ainda que em todos os tempos e estados teve Deus e a Igreja seus escolhidos, contudo, que para aquele último estado de maior perfeição tinha o mesmo Deus guardado o escolhido do escolhido.

Que o matrimônio de Cristo com a Igreja universal, ainda não estava perfeito e inteiramente consumado, e se devia consumar na última idade do mundo, depois que todas as nações dele se tivessem convertido à fé de Cristo, e conhecimento do verdadeiro Deus, e a Igreja estiver toda reunida e reformada, e não houver nele mais que um só corpo, e um só espírito; um só corpo por fé, e um só espírito por caridade.

Que suposta a diferença que há entre: Sponsa, et uxor; comparado aquele tempo do estado futuro dá. Igreja com este em que agora vivemos, se há de ver e conhecer claramente, que este presente em que estamos, em que tanta parte do gênero humano por falta de fé, e tanta outra por falta de caridade, anda apartada e separada da união de Cristo, é estado somente de desposórios, e se deve chamar agora à Igreja sponsa; porém que aquele no qual toda a mesma Igreja, composta já de todo o gênero humano, há de estar unida ao próprio Cristo por fé, por caridade, e por inteira participação de todos os seus bens, há de então ser verdadeiramente o estado de perfeito e consumado matrimônio, e como tal se deve então chamar a Igreja: Non sponsa, sed uxor ejus.

Que também era conveniente que houvesse algum tempo em que todos servissem a Deus, e que fossem santos, para que se mostrasse a eficácia do sangue de Cristo. Nem parece que se podia de outro modo encher o número dos predestinados, conforme a opinião mais provável e verossímil de muitos doutores, os quais têm para si que são mais os predestinados que os réprobos; e assim parece que o diz a razão, a misericórdia de Deus, e o exemplo dos anjos, dos quais só caiu e foi reprovada a terceira parte; e de daquela natureza pela qual não morreu Deus, e na qual não havia desculpa de fragilidade natural, salvou o próprio Senhor as duas partes, com quanta maior razão se pode crer o mesmo da natureza humana, depois de Deus a haver unido a si, e ganhado-lhe a graça com o seu sangue?

Que no sobredito tempo novo e felicíssimo estado da Igreja de Deus (muito diverso do presente e passado, em que no mundo todo não há de haver outra crença e outra lei, senão a de Cristo, com redução geral ao conhecimento da nossa santa fé) se há de consumar o reino e império do mesmo Cristo; e que este é o quinto império profetizado por Daniel; e que então há de haver no mundo a paz universal prometida pelos profetas no tempo do Messias, a qual ainda não está cumprida mais que incoadamente.

Que no dito tempo deste império de Cristo, havia de haver no mundo um só imperador, a quem obedecessem todos os reis e todas as nações do mesmo mundo; o qual imperador há de ser o vigário de Cristo no temporal, assim como no espiritual é o pontífice vigário de Cristo, sendo então também perfeito e consumado o próprio império espiritual; e que todo este novo estado da Igreja, duraria por muitos anos.

Que a cabeça deste império temporal há de ser Lisboa, e os reis de Portugal os imperadores supremos; e que neste tempo há de florescer universalmente a justiça, a inocência e a santidade em todos os estados: e que se estas e outras proposições lhe foram estranhadas, era somente por não serem julgadas nem tratadas ex professo pelos doutores, e por se não ter notícia dos textos, autoridades e razões, em que se ele réu funda com grande concordância das escrituras sagradas; havendo aliás quem, considerando a grandeza e importância de muitas das ditas matérias, e a utilidade que do conhecimento delas se pode seguir à Igreja, e da conversão de muitas almas de ateus, gentios, judeus, e de todo outro gênero de infiéis e hereges, julgou e disse que eram merecedoras as próprias matérias, de que na Igreja se fizesse um concílio para maior qualificação delas.

Expondo o réu umas palavras de Afonso de Castro[2] acerca de Papias ser ou não ser herege, compreendido no erro dos milenários (de cuja presunção o réu na mesa do santo ofício tinha sido argüido no tocante à duração dos mil anos que dava ao seu quinto império do mundo) repetia as palavras do dito autor, que são assim: - Hoec omnia in medium placuit aferre, ut videant hi, qui facile de haeresi pronunciant, quam facile etiam ipsi errent, et intelligant non esse tam leviter de haeresi censendum, praecipue cum non sit peius crimen quod viro chistiano possit impingi, quam si haereticus appelletur: e logo dizia o seguinte: - "As quais palavras refiro aqui por serem de um tão douto qualificador de todas as heresias que na Igreja se levantaram até seus tempos; e porque pode servir de doutrina à inconsideração com que alguns atrevidos censuradores, por quererem caluniar as proposições alheias, as fazem errôneas e ignorantes."

Que os inquisidores lhe haviam feito força e violência notória, negando-lhe o direito natural da sua defesa, e querendo-lhe tomar conta até dos pensamentos e coisas futuras, argüindo-lhe das perguntas que lhe foram feitas, erros e conseqüências absurdas.

E sendo o réu no mesmo tempo novamente denunciado no santo ofício, de haver dito em presença de algumas pessoas outras mais proposições se achou dissera as seguintes dignas de graves censuras.

Que convinha ao bem deste reino declararem-se nas inquisições dele os nomes dos denunciantes e testemunhas, ou, como vulgarmente se diz, darem-se abertas e publicadas aos cristãos-novos, presos pelo crime de judaísmo; e que acerca disso fizera vários papéis que dera a sua majestade, procurando persuadir-lhe ser o que mais convinha.

Que assim como neste reino, havendo muitas pessoas que esperavam a vinda Del-Rei D. Sebastião, sua majestade sabendo disso se não sentia delas, nem fazia caso disto; assim também se os cristãos-novos continuassem as Igrejas sem fazerem nem dizerem coisa alguma contra a nossa santa fé, se lhes não devia fazer caso de que eles tivessem o abuso de esperarem pelo Messias.

Que para a conservação deste reino, era necessário admitirem neles judeus públicos, por serem os que conservam o comércio, de que procediam as forças do mesmo reino; e que enquanto neste, em tempo de certo rei, se permitiram os tais judeus, fora ele muito mais opulento em riquezas e em poder, como agora são a república de Holanda, e outras, onde os próprios judeus se passaram, depois de serem expulsos de Portugal.

Que não há dúvida que os inquisidores faziam no santo ofício os cristãos judeus.

Que em outra ocasião, falando-se em Bandarra, dissera que tanto era certo ser verdadeiro profeta, e por tal tido de muitas pessoas das mais autorizadas, que vendo algumas ao réu caído de certa privança e valimento, e com outras desconsolações, o animaram com lhe dizerem que necessariamente havia de melhorar de fortuna, pois o mesmo Bandarra assim o havia profetizado em uns versos que diziam:

Vejo a um alto engenho
Em uma roda triunfante:

entendendo pela roda a da fortuna, e pelo alto engenho a ele réu, a quem, posto que estava abatido, tomaria ainda a levantar a própria roda.

Que em certos sermões que o réu havia pregado dissera, entre outras muitas proposições dignas de grande nota, as seguintes; a saber.

Em um sermão de São Pedro Nolasco: Dois Pedros concorrem hoje nesta solenidade (Vieira part. 2ª. serm. 7) e tão parecidos em tudo que apesar do antigo provérbio dos nossos antepassados havemos de confessar que de Pedro a Pedro não vai muito, mas vai pouco.

Em outro sermão da festa de Nossa Senhora da Graça, ponderando as palavras do Evangelho: Stabat juxta crucem Jesu Mater ejus (João XIX - 25) disse que os termos por onde os doutores comumente se declaram, e encarecem a excelência da graça da Virgem Santíssima Senhora Nossa, é dizendo, que teve tanta graça, quanta era decente que tivesse a que era digna Mãe de Deus (Vieira part. 2ª serm. 10); porém que este termo por si só, e precisamente tomado na opinião e sentimento dele declarante vinha a ser curto, e pelo qual se não fazia cabalmente o plenário conceito da grandeza da graça de Maria, a quem ainda acumulava mais graça fora esta; e assim dizia que pela cruz, e não pela maternidade se podia cabalmente medir a graça da Senhora; porque a maternidade, dera-lhe graça de Mãe de Deus, e a cruz maior graça que de Mãe de Deus.

Em outro sermão do juízo, trazendo uma autoridade de São João Crisóstomo - Miror, an fieri possit ut aliquis ex rectoribus sit salvus[3] ; disse: que esta proposição está julgada ordinariamente por hipérbole, e encarecimento, mas que ele réu dizia que não é encarecimento nem hipérbole, senão que é verdade moralmente universal em todo o rigor da teologia, ser impossível que se salve algum dos que governam, e que impossível moral chamam os doutores àquilo que nunca, ou quase nunca costuma acontecer (Vieira part. 3ª n.° 238).

Em outro sermão da segunda dominga do advento, havendo falado do juízo final; disse: Sabei, cristãos, que há ainda outro juízo mais terrível; ainda há outro juízo mais rigoroso; ainda há outro juízo mais estreito, que o juízo de Deus: e que juízo é este? É o juízo dos homens. (Vieira part. 5ª serm. 2)

E por se achar que as ditas proposições e denunciações acrescidas continham não só doutrina nova, perigosa e falsa, mas também outras matérias de grande peso e importância, e parecer muito conveniente por todos os respeitos averiguá-las com maior circunspeção e madureza, e com segurança da pessoa do réu; foi mandado recolher em uma das casas de custódia da inquisição, e que dela se continuassem os termos do seu processo.

E sendo todas as proposições, respostas do réu, e denunciações acima referidas mandadas de novo qualificar por outras mais pessoas de conhecidas letras e virtude, e muito versadas na lição da sagrada escritura; e outrossim uma larguíssima apologia que o réu compôs e entregou em juízo depois do tempo de sua reclusão, em que confirmava tudo o que nos ditos papéis do Quinto Império, cadernos e respostas se continha, e procurava prová-lo com as mesmas trovas do Bandarra, vários lugares da escritura, e autoridades de alguns expositores; acrescentando que suposto se não podia com certeza dizer o tempo em que havia de começar a mudança de que tratava (tão notável ao mundo e à Igreja) em ordem ao novo estado do império completo de Cristo, contudo a opinião em que concorriam maiores conjecturas, fundada no texto da visão de Daniel, era, que a dita mudança teria seu princípio na era de 1660, e particularmente na era de 1666, em que o réu aquilo escrevia; retratando-se somente do que tinha escrito em uma das sobreditas proposições acerca de ser mais provável e verossímil, que são menos os réprobos que os predestinados, por se lhe ter advertido na mesa, que esta proposição a respeito de todo o gênero humano era herética, e a respeito só dos católicos era comumente reprovada, por ser menos conforme com a sagrada escritura:

Foram quase todas as sobreditas proposições notadas: umas de suspeitas de judaísmo, por introduzir o réu e propor nelas alguns dogmas rabinos, e esperanças e erros judaicos, e outras de temerárias, escandalosas, errôneas, sapientes hoeresim, e ainda dignas de mais rigorosa censura, e muito ocasionadas a com elas se poderem enganar e perverter os fiéis menos doutos, principalmente os da nação hebréia, que tanto o réu procura favorecer nos seus escritos.

Com que tornou o réu por muitas vezes a ser perguntado em diferentes tempos e multiplicados exames com toda a ponderação e madureza, assim pela matéria das ditas proposições e denunciações acrescidas como pela tenção, que tivera em as escrever e proferir; sendo argüido de uma e outra coisa conforme a verdadeira doutrina dos santos padres e doutores católicos, qualificações e estilo do santo ofício.

Declarando-se-lhe outrossim a qualidade de cada uma das censuras, e as proposições a que eram dadas, e fazendo-se com ele repetidas instâncias, para que na consideração de ser filho de uma religião tão autorizada e benemérita na Igreja de Deus, missionário e pregador evangélico, e do perigoso estado a que ia reduzindo a sua causa, tomasse sobre si, e pondo de parte a demasiada presunção que tinha de suas letras, e engenho, e vaidade, e própria elevação, que claramente se estava conhecendo, quisesse desistir dos erros de suas novas e perigosas opiniões, como muitos e grandes santos e doutores da Igreja haviam feito de algumas em que caíram pela fragilidade humana, e conformar-se com aquilo que o santo ofício lhe advertia e mandava:

O réu o não quis fazer por modo algum, havendo-se-lhe evidentissimamente advertido e mostrado que sem embargo das respostas que dava nos ditos exames (as quais por evitar maior prolixidade se não repetem aqui por extenso) perseverando em sustentar o que tinha escrito e proferido, não iludia os fundamentos e autoridade com que a verdade de nossa santa fé, e resoluções conformes a ela (que devia ter e seguir) se propunha e estabelecia nas ditas qualificações e exames contra as mesmas proposições repetidas dele réu, e contra a falsa e arriscada doutrina, que nelas procurava introduzir, e tratava defender.

Porque em afirmar que há de haver no mundo quinto império terreno de Cristo, e que este é o esperado das gentes: In eum gentes sperabunt (Rom. XV- 12), que São Paulo aos romanos explica do Redentor espiritual; e do que no salmo segundo em que se trata da paixão de Cristo se diz: Postula me, et dabo tibi gentes haereditatem tuam, et possessionem tuam terminos terrae (Sal II - 8), e de outros mais (que são os mesmos que provam a fé do reino espiritual que Cristo fundou na sua cruz: Regnavit a ligno Deus[4] ) declina ao erro dos judeus, que esperam reino temporal contra Cristo Redentor, e rei espiritual crucificado: Nos autem praedicamus Christum crucifixum: judaeis quidem scandalum. (1. Cor. I - 23)

Nem se escusava confessando também o reino espiritual de Cristo crucificado, que reconhece, porque também Cengo reconhecendo-o era judaizante, por lhe ajuntar as cerimônias da lei; como também aos milenários chama judaizantes S. Jerônimo com a Igreja, que os condena por declinarem as esperanças para o reino terreno de mil anos, que os judeus esperam no tempo do seu Messias com as felicidades deste quinto império.

Nem se desvia dos milenários judaizantes com prometer este reino nesta vida, e muito cedo, esperando-o aqueles na outra, porquanto mais se chega aos judeus, que o esperam também nesta vida presente na vinda do seu Messias, e perpétuo depois para sempre na Terra, donde se segue que tendo até agora à pregação evangélica de Cristo Rei espiritual e crucificado: Nos autem praedicamus Christum crucifixem (Ibid.) (a que repugna o reino temporal) daqui por diante seria lícito pregar: Christum crucifixum temporalem regem; esperar e pedir pela cruz de Cristo, reinar temporalmente na Terra com ele, como pregamos e pedimos reinar espiritualmente com o mesmo Senhor no Céu; porquanto tudo o que há de haver em Cristo Redentor, Rei e cabeça nossa, se pede e deve pedir e esperar Dele para todos os professores da sua redenção, pela qual nos deu todo o seu merecimento; e assim ou virão outra vez ao mundo lograr este reino terreno de Cristo os antigos padres, como dizem os judeus dos seus, no tempo do reinado do Messias; ou ficarão privados, sem culpa sua, desta glória terrena todos os que não viverem naquele tempo.

Nem carecerão desta pena os bem-aventurados do Céu; pois Cristo Rei da glória, segundo o doutrina deste quinto império, ainda espera empossar-se deste reino temporal na Terra, como consumação do seu reinado, por meio de seu temporal vigário, certo rei de Portugal e seus sucessores, à semelhança do vigário de Cristo espiritual; e assim porão na Terra os bem-aventurados também seus procuradores, para tomar posse do que lhes cabe neste reinado, o que sobre ser fátuo no sentido humano, como se nota, o é também na censura de Roma, por ser sem fundamento algum da escritura, pois se não acha nela lugar da instituição deste vigário temporal de Cristo na Terra.

E sobretudo semelhante modo de discorrer, principalmente declina a judaísmo; pois segundo a doutrina de São Paulo, não se admite salvação, santidade, e bem-aventurança da alma com bens terrenos e temporais nesta vida e na outra; e os judeus para isso, e por isso, dizem que o são para serem ricos e honrados; e esta é, e foi a total causa por que não receberam, nem hoje recebem a redenção espiritual de Cristo, que só foi e é por cruz, pobreza e desprezo, sem as bonanças temporais, a que sempre atenderam. os judeus.

Pelo que, vendo estes agora, que um cristão, religioso, e douto, ensina e espera de Cristo, e por Cristo crucificado, a consumação e santidade da alma, com as maiores abundâncias da Terra em tantos centenários de anos continuados, dirão que já convimos com eles nestas esperanças, ou pelo menos que não podemos argüir delas daqui em diante, se disserem esperam por este reino de Cristo crucificado, para então, sem os apertos dagora, abraçarem a fé de Cristo com as suas glórias judaicas, que juntamente lhe promete o autor deste papel, e quinto império, pelo mesmo Senhor e Redentor espiritual, do qual se desviavam até agora por não estarem cumpridas, como elle confessa, e eles afirmaram sempre e esperavam, pois com elas se há de consumar a redenção de Cristo: o que tanto mais sabe a judaísmo, que o erro dos milenários, quanto mais se chega ao tempo presente, em que os judeus esperam estas felicidades no seu reinado temporal.

Nem isto assim dito se podia nem aparentemente deduzir dos textos das profecias de Daniel, com que o réu mais em especial queria provar aquelle futuro império de Cristo temporal e eterno; nem a quarta besta, e tirano soberbo de que trata, significa o turco in persona ficta, ou Mafona in persona propria, como ele mesmo réu entendia e explicava; senão o Anticristo como os santos padres entendem, especialmente, além de muitos outros, S. Jerônimo, S. Agostinho, Ruperto e Teodoreto.

Porquanto Daniel no cap. 2.° tratava especialmente do reino espiritual e império de Cristo no seu primeiro advento, que já veio, e não é futuro, como a fé ensina, o qual império é ali significado na pedra do monte caída sem mão, que desfez especialmente os quatro reinos antecedentes figurados nos metais da estátua, a saber, dos assírios, persas, gregos e romanos, desvanecendo as glórias de suas crenças com a verdade viva da fé e humildade cristã perpetuada nesta vida, e depois sem fim glorioso na outra.

E ultimamente porque o reino do profeta havia de desfazer os quatro precedentes, e reduzi-los a pó levado dos ventos; e isto em nenhuma maneira se podia verificar temporalmente do reino ou império futuro dele réu; pois neste tempo não pode haver estes quatro reinos, tanto antes acabados, como os havia nas crenças, que veio Cristo a desfazer especialmente: e que assim entendendo-se cada uma das circunstâncias ditas, e as mais que o profeta declara, adequadamente só do reino de Cristo eterno; querê-las o réu apropriar ao seu quinto império temporal, e declarar por ele a mesma visão de Daniel, era decliná-la ao sentido judaico contra Cristo, e pelos judeus que fabulam isto do seu Messias.

Do mesmo modo o reino profetizado na visão do cap. 7.° era o império do Anticristo, depois do qual se segue a posse perfeita do reino, aqui por fé e graça, e depois por glória eterna corporal e espiritual do seu segundo advento e dia de juízo, que ali se descreve; porquanto naquele lugar se trata dos quatro reinos da Terra, significados pelas quatro bestas, e depois delas do juízo do reino do santo Sempiterno, como o anjo declarou ao mesmo Daniel, que lho perguntava; e acrescenta o texto que a quarta besta significava o quarto reino que havia de haver, maior e mais forte que todos os outros, que, segundo os expositores se entende do império romano, e que depois se levantaria um tirano, que presumiria mudar os tempos e leis, o que de nenhuma qualidade se podia nunca literalmente verificar em Mafoma in persona propria, nem na sua seita na pessoa do turco (como o réu afirmava no seu Quinto Império), senão na do Anticristo; porque Mafoma não disse que era Deus, nem por tal se fez adorar, como o Anticristo fará, e que esta é a verdadeira significação das mesmas palavras de Daniel: Et sermones contra Excelsum loquetur, et sanctos Altissimi conteret (Dan. VII - 25) como se diz mais claramente no cap. 11.° do mesmo profeta: Elevabitur et magnificabitur adversus omnem deum: et adversus deum deorum loquetur magnifica, et dirigetur, donec compleatur iracundia (Dan. XI - 36); e somente afirmava Mafoma, que era um enviado de Deus, que vinha a moderar o rigor da lei divina, e de Moisés, e não a acabá-las totalmente.

E se mostra com maior evidência não ser aquele tirano o turco, ou Mafoma, porque dizendo o texto que o império do Anticristo há de durar somente: Tempus, et tempora, et dimidium temporis (Ibid. V 1- 25), que são três anos e meio, ou quarenta e dois meses, de que se faz menção no cap. 11.° e 13.° do Apocalipse, vemos que muitos mais reinou Mafoma, e se vai sua seita estendendo a muitos séculos.

E que defender também que no dito tempo futuro do dito quinto império havia de suceder a paz universal, que até agora não estava cumprida senão incoadamente, era o mesmo que os judeus afirmavam acerca da dita paz, não ainda chegada; nem conseguintemente o Messias, que esperam, prometendo-a naquele tempo que ele vier.

E que esta proposição dele réu não somente continha erros judaicos, mas também era das mais injuriosas que trazia, por encontrar e desfazer com os rabinos e alguns hereges, o fundamento e alicerce da fé católica, com que claramente se prova estarem já cumpridas as profecias da primeira vinda, que falam em Cristo acerca da sua e nossa redenção espiritual, contra as temporalidades que os judeus esperavam dele, e hoje esperam de seu sonhados Messias.

Repugnando outrossim ao que os anjos disseram na noite do nascimento quando publicaram ser já chegada a paz prometida pelos profetas, como diz S. Lucas: Gloria in altissimis Deo, et in terra pax hominibus (Luc. II - 14); e contradizendo ao lugar de S. Paulo aos de Éfeso: Ipse enim est pax nostra, qui fecit ultraque unum (Efes. II - 14); aonde a palavra fecit mostra que a dita paz é já obrada, e não futura no tempo do quinto império temporal de Christo, que o réu dizia estava ainda por vir.

Pelo que, sendo de fé só a segunda vinda do juízo final, não pode afirmar o réu, sem erro judaico, terceira vinda, ou complemento dela temporal, nem ainda por um vigário seu temporal, sem mostrar a instituição dele necessária, como se vê do vigário espiritual S. Pedro: Tu es Petrus, et super hanc petram edificabo ecclesiam meam. (Mat. XVI - 18)

E o que alegava em comprovação do mesmo império de Cristo temporal e terreno no mundo todo, acerca da carne que tomou de Adão, não ser de Adão escravo e pecador, senão de Adão livre e senhor, era erro de Galatino, condenado por S. Agostinho, por ser coisa sem dúvida, que Cristo esteve em quanto homem, como os mais em Adão, e que Adão não gerou no estado da inocência, senão depois de pecar, nem houve nele tal reservação de carne sem pecado, da qual Cristo procedesse.

Que o encarecer de verdadeiras e infalíveis as profecias do Bandarra, com o igualar da clareza delas aos profetas canônicos, e inferir que de haver dito dezoito vezes, que via as coisas futuras, se havia necessariamente de seguir o efeito delas, não só era ilícito, mas blasfemo, sacrílego, e temerário, pois as verdades das profecias canônicas são de fé, e as do Bandarra, como suspeitas de judaísmo, eram proibidas, como já se lhe tinha dito.

Que era certo, conforme a mais comum sentença dos teólogos mais sábios, que os profetas canônicos e verdadeiros não só viam as profecias absolutas, que indubitavelmente haviam de suceder, mas também as cominatórias, ou condicionais, e os efeitos que haviam de faltar; e assim que ele réu em afirmar, ou inferir que de Bandarra dizer que via as coisas futuras, necessariamente se colhia que via o sucesso delas, e sustentar que via os futuros existentes in se ipsis; ficara equiparando as visões do Bandarra, praedictioni divinae, contra a verdade da fé., que só a Deus atribui esta certeza infalível, pela qual razão no expurgatório romano se tem proibido o dizer que o conhecimento profético nas profecias é intuitivo, como o réu supunha.

Que trazer em prova e demonstração do seu intento o cap. 29 do Gênese, onde se trata de Labão, Lia e Raquel, com o engano dos desposórios de Jacó, declarando ele réu a significação destas figuras do modo que se tem referido, continha graves erros em matérias de fé, e não pequena suspeita de judaísmo.

Porquanto, conforme o comum sentimento dos santos padres, Lia irmã mais velha, e de fraca vista, representava a sinagoga; Raquel, estéril e formosa, a Igreja de Deus, por haver sido Lia nos desposórios de Jacó (figura de Cristo) primeiro que Raquel, assim como foi primeiro à sinagoga dos judeus, que a Igreja nova dos gentios na profissão da fé divina; como também sua irmã mais velha representava o povo judaico, e Raquel, mais moça, o gentílico; o que os rabinos afirmavam, vice versa, e isto pela razão falsa que o réu dizia, scilicet, que os gentios foram primeiro no mundo, que os judeus.

Que na própria suposição, é falso dizer que Roma há de ser abrasada quando vier o seu Messias, pelos judeus descendentes de Jacó e Raquel, por se dizer no cap. último de Abdias, que Iduméia, ou casa de Esaú, há de ser por eles abrasada, e que depois disso hão de ser os romanos e gentios escravos dos judeus, trazendo para o provar o cap. 25 do Gênese nas palavras: El major serviet minori (Gên. XXV -23); e as do cap. 61 de Isaías: Et stabunt alieni, et pascent pecora vestra (Isaí. LXI - 5); pois estes textos só se entendem espiritualmente.

E dizer ele réu, que por engano do Demônio representado em Labão, e pela escuridade da noite se desposara Cristo, representado em Jacó, com a Igreja das gentes, ou com Lia, não só era injurioso à mesma Igreja, mas ímpio e herético, contra o que diz S. Paulo aos de Corinto: Quae stulta sunt mundi elegit Deus, est confundat sapientes: et infirma mundi elegit Deus, ut confundat fortia: et ignobilia mundi, et contemptibilia elegit Deus, ut ea, quae non sunt descrueret: ut non glorietur omnis caro in conspectu ejus (1 Cor. I - 27, 28 e 29); as quais palavras todas se entendem ao pé da letra pelos gentios eleitos, deliberada e acertadamente, e não acaso por engano do Demônio, e desprezados pelos judeus, o que também era judaico, por ficar dizendo com os rabinos, que a Igreja católica é cega, e anda às escuras, e que a lei de Moisés é mais clara e excelente que a de Cristo.

Que do mesmo modo dizer que no tempo do quinto império, e maiores felicidades da igreja, a que chama reformada, havia de haver escolhidos entre escolhidos, e não só escolhidos entre os reprovados, ponderando novamente em prova disso a parábola do pai de famílias, e operários, do evangelho de São Mateus, era não só injurioso a Cristo Senhor nosso, do qual se diz na escritura: Ellectus ex millibus; e à Virgem Senhora nossa, da qual canta a Igreja: Elegit eam Deus, et praeelegit eam[5]; mas também tinha sabor de judaísmo, por dizerem e esperarem os judeus, que no tempo do quinto império do seu Messias há de haver também escolhido do escolhido, e o estado da inocência que estendem até aos brutos, explicando assim o texto de Isaías: Et leo quasi bos comedet paleas (Isaí. XI - 7).

Que outrossim era errôneo e suspeito de judaísmo, afirmar que só no tempo do quinto império e estado da Igreja, quando estiver unida e reformada, e o mundo todo chegado à fé, havia de ser verdadeiramente perfeito e consumado o matrimônio de Cristo com a mesma Igreja, e não dantes nem agora, alegando para prova o cap. 19 do Apocalipse, pois se não acha em doutor católico, que no quinto império temporal e terreno de Cristo, muitos anos antes da vinda do Anticristo haja de ser o dito matrimônio perfeito e consumado, e os doutores católicos que dizem haverem as bodas de que se trata no Apocalipse, de consumar-se no céu, não negam que há hoje na Igreja perfeito matrimônio e consumado.

E querer também que só fossem promessas e esperanças de matrimônio, a união presente de Cristo com a Igreja: Redolebat sensun hoereticum, et judaicum; assim porque supunha que somente para o dito tempo do quinto império haveria entre Cristo e a Igreja verdadeiro matrimônio: Lege significatum seu signatum: como também porque afirmava que se não chamava a mesma egreja, Uxor Christi, sed solum sponsa, com esperanças de matrimônio.

Que em ele réu chegar a dizer, que por causa das suas proposições não serem vulgares, nem se ter noticia dos textos, autoridades e razões em que as fundava, com grande concórdia das escrituras, se lhe estranharam no santo ofício, havendo quem avaliava as matérias de que tratavam, por merecedoras de se fazer na Igreja de Deus um concílio, para maior qualificação delas, se acaba claramente de descobrir a natural presunção com que o réu vivia satisfeito de suas letras, notícias e singularidades, e chegar-se neste intento de que trata, também para a heresia dos pacificadores, ou tépidos, cuja profissão era concordar as leis e as seitas repugnantes entre si, pois em algumas das proposições dele réu poderiam achar os judeus, hereges, e moiros, não pequenos motivos em favor e abonação dos erros e enganos que seguem.

Que havia delinqüido gravemente em falar dos ministros do santo ofício, assim da sagrada congregação de Roma, como dos deste reino; com a liberdade e pouco decoro que se deixa ver de muitas das sobreditas proposições; afirmando porfiadamente a este fim, que o Bandarra fora verdadeiro profeta, alumiado por lume sobrenatural e divino, com próprio e rigoroso espírito profético, desprezando o dom da profecia, e reprovando a estimação que fazemos desta graça, gratis data, havendo aliás reconhecido e escrito no próprio papel do Quinto Império, que uma das principais provas de que a Igreja usa na canonização dos santos, é o dom da profecia, com que em vida foram alumiados por Deus Senhor nosso.

E devendo tratar com toda a cortesia aos ditos ministros do santo ofício, principalmente acerca das matérias pertencentes a seus cargos, como se manda sob graves penas na bula da santidade do Papa Pio IV, que começa: Si de protegindis; e em outras de diferentes pontífices, e não insistir perfidamente em defender e abonar o Bandarra, e suas trovas, na forma acima dita, e muito menos depois de se lhe haver dito e declarado na mesa do santo ofício, antes e depois de sua reclusão, que pelo mesmo haviam antigamente sido mandadas proibir em razão da suspeita do judaísmo, de que sempre foram notadas pelas pessoas mais doutas e timoratas, o não quis fazer.

E outrossim tinha incorrido nas penas cominadas nos editais do santo ofício contra os pregadores, que destruindo a muitos ouvintes a quem deviam instruir em seus sermões, usam de comparações e semelhanças, que mais servem de escândalo, que de edificação, e proferem proposições temerárias, malsoantes, e dignas de maiores censuras, apartando-se do verdadeiro sentido da sagrada escritura, que a Igreja e padres lhe têm dado, como ele réu tinha feito nos sobreditos sermões, que confessou tinha pregado.

Porque a comparação que fazia no sermão de S. Pedro Nolasco entre o mesmo santo, e o glorioso apóstolo S. Pedro, na qual os igualava e assemelhava entre si, era temerária, por ser dita sem fundamento, autoridade, ou razão forçosa contra o comum sentir dos santos padres, que dizem serem os sagrados apóstolos os mais santos da Igreja, assim pela comunicação e companhia que lograram com Cristo, como porque sendo maiores na dignidade, se segue que lhes devia ser comunicada maior graça, segundo os doutores afirmam.

E o que havia pregado no sermão de Nossa Senhora da Graça, era proposição temerária e malsoante, por ser contra o unânime consenso e autoridade de todos os santos padres e doutores que medem adequadamente a graça da Senhora pela maternidade de Deus, e não pelo estar ao pé da cruz, pois, como a cada passo os teólogos ensinam, é de fé, que a Virgem Senhora nossa foi ab aeterno predestinada para Mãe de Deus, para a graça e para a glória, e tudo tão ajustado com o decreto divino, que não pode haver na mesma Senhora grau de graça ou glória fora do próprio decreto divino.
Como também é certo, ao nosso :rodo de falar, que foi primeiro predestinada para a dignidade de Mãe, e depois em segundo signo, para a graça e glória, e assim sendo toda predestinada para a graça em segundo signo, como meio e disposição para conseguir o fim praedistinationis maternitatis, claramente se fica seguindo, e deve seguir, o medir-se a graça só pela maternidade, e que o merecimento que a Senhora teve ao pé da cruz foi efeito da dita predestinação ordenado ad illius consecutionem, e não regra ou medida para o conhecimento da sua graça, como foi a maternidade de Deus, a qual ad alias gratias creatas se compara tanquam prima forma ad suas proprietates; e pelo contrário as outras graças se comparam a respeito da mesma sicut dispositiones ad formam.

Que também fora temerário e errôneo o afirmar no sermão do juízo (Vieira part. 3.ª n.° 238), que não era hipérbole o dizer-se Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus[6] ; temerário porque não tem fundamento de razão nem autoridade em que se possa fundar e sustentar; errôneo, porque é manifestamente falso sem o uso da figura hipérbole, dizer que nunca ou quase nunca aconteceu que alguns dos que governam se salvem; pois consta por declaração da Igreja serem tantos e estarem gozando de Deus muitas pessoas que neste mundo governaram, assim eclesiásticas como seculares, como também é de crer sucederá ainda a muitos que agora governam.

E finalmente, as palavras de que usou no sermão da segunda dominga do advento eram escandalosas, errôneas e ainda sapientes haerisim; porque direta e formalmente se opunham à doutrina que Cristo deu a seus discípulos, como consta do Evangelho de S. Lucas: Dico autem vobis amicis meis: Ne terreamini ab his, qui occidunt corpus, el post haec non haben tamphius quid faciant (Luc. XII - 4 ). Além de que nas sagradas letras não se encomenda o temor dos homens, encomenda-se aliás o de Deus por muitas vezes: e sobre isto podiam as palavras dele réu dar ocasião a que os homens mais insolentes, assim como puderam não temer serem castigados e culpados pelos ministros da Igreja, conforme a qualidade de suas culpas, muito menos temam o juízo e castigo de Deus por ser, na opinião do réu, menos rigoroso que o dos homens.

E havendo o processo chegado a estes termos, nos quais a resistência do réu em suas erradas e perigosas opiniões certamente o ia guiando a um miserável precipício, por se ter notícia certa nesta inquisição, que as primeiras nove proposições tiradas do dito papel do Quinto Império do Mundo, das quais todas as outras são dependentes e deduzidas pelo réu, não somente foram censuradas, como fica dito, pelos gravíssimos qualificadores da sagrada congregação do santo ofício de Roma, senão também que sendo suas censuras vistas depois pela santidade do Papa Alexandre VII, as aprovou expressamente, e mandou disso fazer aviso pela mesma congregação ao conselho-geral do santo ofício deste reino, e que nele fosse proibido o dito papel censurado, e novamente as trovas do Bandarra, como com efeito se proibiram; se declarou ao réu judicialmente tudo o que havia passado acerca da censura e da aprovação expressa de sua santidade, para que em cumprimento dos repetidos protestos, que no decurso de sua causa tinha feito, se acabasse de desenganar e entender, que o que lhe convinha para descargo de sua consciência, e poder ser tratado com piedade e misericórdia, de que muito se desejava usar com ele, era desistir lisamente de tudo o que tinha escrito e proferido, assim naquelas nove proposições, como nas mais que escreveu em conseqüência e defensão delas; e outrossim das que continham nas respostas que deu na mesa aos exames que lhe foram feitos, e conformar-se com uma e outra coisa com a verdadeira e católica doutrina de que no santo ofício o haviam certificado, aprovada pela dita resolução do sumo pontífice; e que, se queria estar para o mesmo efeito mais presente nas ditas proposições e respostas, lhe tornariam a ser lidas, e os exames que acerca de cada qual delas lhe fizeram; e respondeu o réu, que se lhe lessem primeiro as suas proposições censuradas (que por todas eram cento e quatro) e os exames delas, e lhe foram lidas, e mostradas em seus originais, e os exames.

E sendo tudo por ele visto, ouvido e entendido, confessou que passava assim na verdade, e por tal reconhecia havê-la escrito, proferido, pregado e respondido, exceto o que dele réu se tinha denunciado na inquisição acerca de afirmar que se podia licitamente permitir aos cristãos-novos o abuso da esperança pelo Messias, se no exterior fizessem obras de verdadeiros católicos; e que os inquisidores os faziam judeus no santo ofício; e que neles se lhes devia dar abertas e publicadas, porque ainda que poderia em algumas ocasiões haver falado nestas matérias, estava certo que nunca fora com a formalidade e aspereza das palavras denunciadas.

E usando o réu de melhor conselho, com mostras e sinais de arrependimento, disse que como verdadeiro católico e religioso se sujeitava com toda a lisura e sinceridade à dita resolução e censuras de sua santidade e seus ministros de Roma, aceitando, reverenciando, e reconhecendo por verdadeira doutrina a que na mesa do santo ofício se lhe havia dado nos exames e admoestações que no decurso de sua causa se lhe tinham feito, e que desde logo se desdizia e retratava de todas as sobreditas proposições conteúdas assim no dito papel do Quinto Império, e respostas que deu acerca dele, como nos cadernos que tinha deixado na mesa e nos sobreditos, sermões que havia pregado; e não só desistia de as querer defender, explicar, e declarar o sentido delas, como até então ia fazendo, senão que pedia e requeria, que, conforme a desistência e retratação, fosse sua causa julgada nos termos em que estava, com a comiseração e piedade que esperava da misericórdia deste santo tribunal.

O que tudo visto, com o mais que dos autos consta, e como o réu se desdisse e retratou de tudo o que contém as ditas suas proposições, que até então havia procurado defender, sem embargo das multiplicadas instâncias que em contrário se lhe fizeram no decurso do seu processo, sujeitando-se ao que estava determinado por sua santidade e dantes censurado pelos ministros do santo ofício, como filho obediente da Santa Igreja Católica Romana:

Mandam que o réu o Padre Antônio Vieira oiça sua sentença na sala do santo ofício, na forma costumada, perante os inquisidores e mais ministros, oficiais e algumas pessoas religiosas, e outros eclesiásticos do corpo da universidade, e seja privado para sempre de voz ativa e passiva, e de poder pregar, e recluso no colégio ou casa de sua religião, que o santo ofício lhe assinar, donde sem ordem sua não sairá; e que por termo por ele assinado se obrigue a não tratar mais das proposições de que foi argüido no decurso de sua causa, nem de palavras nem de escrito, sob pena de ser rigorosamente castigado; e que depois de assim publicada a sentença, o seja outra vez no seu colégio desta cidade por um dos notários do santo ofício em presença de toda a comunidade; e que da maior condenação, que por suas culpas merecia, o revelam, havendo respeito à sobredita desistência e retratação, e a vários protestos que tinha feito de estar pela censura e determinação do santo ofício, depois que nele vissem a explicação e inteligência que ia dando a todas as suas proposições, de que se lhe tinha feito cargo, e ao muito tempo da sua reclusão, e a outras considerações que no caso se tiveram; e pague as custas.

Foi publicada esta sentença ao padre Antônio Vieira na sala da inquisição de Coimbra em sexta-feira à tarde 23 de dezembro de 1667: gastou em se ler duas horas e um quarto: no sábado seguinte se publicou pela manhã no seu colégio, onde ficou o padre Vieira para daí ir para a casa da religião que o santo ofício lhe assinasse para residência e reclusão, que foi a de Pedrozo; a qual antes de partir lhe foi comutada pelo conselho-geral para a casa do noticiado da Cotovia de Lisboa; e estando nesta, foi dispensado pelo mesmo conselho geral em tudo no mês de junho de 1668; e em 15 de agosto de 1669 partiu de Lisboa para Roma com licença do Príncipe Regente D. Pedro.






Um comentário:

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    Comentário Único - demais descrições, na pág. devida - Clavis Prophetarum
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    Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.

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