domingo, 15 de setembro de 2013

Profecia - Livro 5




V
Petição do
Padre Antônio Vieira
ao Tribunal do Santo Ofício de Coimbra


Diz o Padre Antônio Vieira, religioso da Companhia de Jesus, que em maio do ano de mil seiscentos sessenta e três, estando muito enfermo, lhe mandaram notificar os senhores inquisidores que não saísse desta cidade de Coimbra sem aparecer em sua presença; e continuando a dita enfermidade sem aproveitarem nenhum remédio, resolveram os médicos que só na mudança para os marítimos ares, por serem mais próprios do seu natural, poderia cobrar saúde, pelo que lhe ordenaram seus superiores que fosse para o canal junto ao porto de Buarcos, aonde a sua religião tem casa. Partindo do colégio se foi apresentar de caminho ao santo ofício, e sem embargo de se ver o estado em que estava, e ele suplicante alegar o perigo de sua vida, lhe mandou o senhor inquisidor Alexandre da Silva que não continuasse a dita jornada, nem saísse do distrito desta cidade e colégio, como com efeito o fez, recolhendo-se à quinta de Vila Franca, que foi o dia 21 de julho, onde se lhe agravou a enfermidade, e durou a cura dela até os primeiros de outubro.

Neste tempo, ainda mal convalescido, tornou para ao colégio, e com grande moléstia corporal, e perigo de seu crédito, continuou em ir ao santo ofício, como lhe era mandado, e em várias sessões se lhe pediu conta e fez cargo principalmente de uma carta que escrevera ao bispo eleito do Japão, o padre André Fernandes, em que ele suplicante interpretava certas profecias ou vaticínios de que inferia a ressurreição d'el-rei defunto D. João o quarto, e assim mais de outras proposições, também acerca de coisas futuras, e várias interpretações de lugares da Sagrada Escritura que em diferentes ocasiões se lhe imputavam haver dito, e finalmente de quantos papéis ou livros tinha escrito, ou tivera pensamento de escrever, e das matérias e assuntos que neles havia de provar: de todas as quais coisas se lhe pediram os fundamentos, e se lhe fizeram muitas perguntas sobre elas, e se lhe argüíram em contrário diversas conseqüências e implicações, a que ele suplicante satisfez breve e sucintamente quanto o sofria aquele ato, reservando a mais larga declaração e prova de tudo (quando se lhe pedisse e fosse necessária) para papel e tratado mais largo, em que difusamente mostrasse os fundamentos das suas opiniões com os textos e autores delas, e refutasse as objeções que em contrário se argüíram e podiam argüir.

E porque no fim do exame das ditas proposições lhe foram declaradas algumas qualificações ou censuras que a ele suplicante lhe pareceram mui alheias do merecimento e probabilidade do que havia dito ou escrito, e as censuras se podiam fundar no menos conhecimento de seus fundamentos, e em serem as ditas proposições interpretadas em mui diferentes sentidos do que ele as tinha proferido em sua própria e natural significação; respondeu ele suplicante, que ele reverenciava as ditas censuras pelo respeito e obediência que dava a este sagrado tribunal, e que estava mui disposto a seguir e ter por melhor tudo o que por ele fosse julgado; mas que visto haverem sido censuradas as ditas proposições, em ele ser ouvido, e serem interpretadas muitas delas em sentido muito alheio do que foram proferidas, como das mesmas censuras lhe constava claramente, e pedia licença com toda a submissão aos senhores inquisidores para alegar as razões e escrituras, autoridades dos santos padres, e princípios da teologia em que ele suplicante se fundava quando teve por verdadeiro e provável tudo o que dissera e escrevera, para que sendo presentes aos senhores inquisidores apostólicos os ditos seus fundamentos, pudessem ser de novo julgadas e qualificadas as suas proposições, e condenadas ou aprovadas conforme o merecimento delas, a cujo juízo ele logo se sujeitara, como obediente filho da Igreja e seus ministros.

E posto que o intento dele suplicante nunca foi pôr em pleito a probabilidade ou verdade de suas opiniões, mais que dar uma simples e pacífica notícia do fundamento delas, lhe foi dito que, conforme os estilos deste sagrado tribunal, se havia formar libelo contra ele, como com efeito se formou, em que de novo foi acusado como réu das proposições que se supunha ter dito e escrito, ou tivera pensamento de escrever, não se lhe dando cada uma das proposições em particular (como ele espera para poder responder com toda a formalidade) senão por termos muito universais e vagos, e mais dificultosos de serem respondidos, senão em mui larga escritura, como logo representou ao dito senhor inquisidor Alexandre da Silva, e no mesmo dia lhe foi dado por procurador da causa um advogado, a quem não sabe o nome, o qual lhe disse que daquelas matérias não entendia coisa alguma, e para pedir tempo suficiente para responder e alegar a multidão e dificuldade das matérias de que se lhe fazia cargo, e o estado de sua pouca saúde, foi necessário que o suplicante lhe ditasse (como ditou) o que havia de dizer, não sendo esta a sua profissão, nem tendo conhecimento algum dos estilos do Santo Ofício.

Foi esta última sessão em abril do ano de 1664, e estava atualmente ele suplicante com princípio de nova enfermidade por remédio da qual lhe mandaram os médicos sair dos ares de Coimbra, e passar aos de Vila Franca, onde a doença se declarou, e esteve muitos tempos em cama sem se lhe despedir a febre, senão nos princípios de outubro, que foi o primeiro tempo em que depois de lido o libelo teve alguma saúde, e esteve mais desimpedido para tratar da resposta ou defesa dele, posto que neste tempo por razão da opilação com que ficou da doença e perseveração da outra, lhe mandaram os médicos que duas ou três vezes na semana saísse a fazer exercício ao campo, que é circunstância muito necessária de se advertir, por se impedir a ele suplicante com este remédio as horas da manhã, que são as principais, e menos nocivas do estudo, e mais em pessoas achacadas.

No fim de dezembro do dito ano o mandou chamar o dito senhor inquisidor, e lhe pediu a resposta ou apologia de suas proposições, e ele suplicante lhe apresentou vinte e cinco ou trinta cadernos de vários apontamentos e questões que tinha começado, representando os impedimentos naturais acima referidos, com que estivera impossibilitado, e a multidão e qualidade das matérias, que cada vez irão mostrando mais quão impossível coisa era serem respondidas com a brevidade que se lhe mandava, sem embargo que o dito senhor inquisidor mandou fazer um termo para responder até à Páscoa da ressurreição deste presente ano, que vinham a ser três meses, pouco mais ou menos, e lhe foi mandado que assinasse o dito termo; em que se lhe mandava coisa impossível, o dito senhor inquisidor lhe respondeu que visse lá em que se metia, acrescentando outras palavras de ameaça, de cujo rigor ele ficou muito admirado, e assinou com força. Apertado desta maneira, começou ele suplicante a fazer excessos por satisfazer o que lhe era mandado, estudando e escrevendo de dia e de noite com tal aplicação, que no fim do primeiro mês começou a lançar sangue pela boca, e posto que ao princípio o encobriu pelo não obrigarem os médicos e prelados a desistir do estudo, ao fim vendo que punha em manifesto perigo ainda houve de tratar de remédios, os quais não bastaram, antes se lhe ateou uma febre contínua e habitual, de que esteve muitos meses em cama desconfiado da vida, de que ainda não está convalescido, nem seguro de uma grande recaída, por razão dos ares deste clima de Coimbra, como consta das certidões dos médicos que oferece, e o curaram nesta e nas outras suas enfermidades.

Estando ele suplicante neste estado na quinta de Vila Franca, a dez do presente mês de setembro lhe foi dada uma carta em que os senhores inquisidores lhe mandavam levasse logo a resposta que tinha prometido ou a remetesse, se por razão dos seus achaques a não pudesse levar pessoalmente; e respondendo ele suplicante com o notório impedimento que havia tido para poder acabar nem prosseguir a dita resposta, e que a demasiada e excessiva aplicação que pusera em obedecer fora a causa do dito impedimento. No dia seguinte lhe mandaram os ditos senhores inquisidores por outra carta, que em qualquer forma que estivesse a dita resposta lha enviasse logo para a sua causa se sentenciar afinal, na forma do termo assinado, declarando a ele suplicante, que não poderia dizer com razão alguma que o despacharam sem dar prova à sua defesa, pois se lhe tinha esperado por ela um ano e meio.

Ao que ele respondeu, que o tempo dos últimos três meses ainda não era passado, porquanto em dois meses do dito tempo estivera legitimamente impedido, como era notório, e que o chamado ano e meio não tinha sido mais que quatro meses legais e efetivos, pelo mesmo impedimento da doença antecedente, como tem referido, e que ainda no caso em que fosse ano e meio não era tempo suficiente, suposta a quantidade e qualidade das matérias a que era mandado responder, acrescentando ele suplicante que de nenhum modo consentia em se lhe haver de negar o direito natural da própria defesa cujo tempo se devia proporcionar com as matérias dela, e que assim o requeria aos ditos senhores inquisidores; contudo, que por obedecer levaria os papéis e apontamentos que tinha feito, no estado em que estivessem, como lhe era mandado. Em cumprimento do qual foi ele suplicante ao santo ofício em 14 do dito mês, e apresentou aos senhores inquisidores dez ou doze mãos de papel de apontamentos e questões começadas todas, e nenhumas delas concluídas no estado em que as tinha; declarando que ele não apresentava os ditos papéis para prova da sua defesa porquanto não estavam capazes disso, nem ainda no estado em que estavam se lhe dera tempo para os ver e remendar nem sabia o que neles se dizia, e algumas das mesmas coisas se haviam de mudar, como acontece a todos os que compõem e escrevem qualquer matéria, e muito mais de controvérsias, e que somente apresentava aqueles papéis aos ditos senhores inquisidores para que os vissem e lhes constasse como ele suplicante tinha obedecido e trabalhado neles sem cessar, e que assim o pedia e requeria; o que os ditos senhores não quiseram fazer, nem ainda ouvi-lo devagar, dizendo que tinham muitas ocupações, e que o que ele suplicante dizia se não escrevia, nem importava nada para a sua causa, a que ele replicou requerendo que se lhe tomasse por escrito tudo o que ele dizia e tinha para dizer, protestando de novo que se lhe desse tempo necessário e suficiente para responder; que o mesmo tempo que se lhe tinha dado e assinado se lhe tornava a negar, contra todo o direito natural, do qual direito ele de nenhum modo cedia, nem consentia na violência notória que se lhe fazia por este modo, e que assim o tornava a requerer. Respondendo-se-lhe a tudo que deixasse os papéis, e se fosse, como com efeito foi, obrigado e contra sua vontade. Tornando a declarar e a requerer que os ditos seus papéis se lhe haviam restituir, pois eram os instrumentos e armas de sua defesa com as quais ele se não podia defender enquanto não estavam formados e postos em estado que por eles constasse a sua razão e justiça.

Este é o fato de todo o processo da sua causa até o dia presente, de que dá por prova os mesmos autos, e do que deles não constar aos mesmos senhores inquisidores e notário, que estava presente, e se de alguma outra coisa das acima referidas nesta narração, for necessária mais prova que a notoriedade delas, se oferece a provar todas pelos meios de direito.

Pelo que tudo, é forçado ele suplicante a recorrer ao conselho geral do santo ofício, e pedir e requerer, como pede e requer a vossa senhoria, se lhe não tire nem negue (como nos termos presentes parece se lhe quer tirar e negar) o direito natural de sua defesa. Porquanto:

Provará que ele suplicante não pode ser sentenciado sem se lhe dar defesa, e o tempo suficiente e necessário para ela.

Provará que o tempo necessário e suficiente para a dita defesa se há de medir e proporcionar e regular pela quantidade das matérias de que se trata, e pela disposição ou capacidade do sujeito ou pessoa que há de dar ou fazer a dita defesa.

Provará que a ele suplicante se lhe não tem dado até agora o tempo suficiente e necessário para a sua defesa, segundo a dita quantidade e qualidade das matérias a que deve responder.

Provará que as ditas matérias, quanto à quantidade, são muitas e diversas; porque não só se lhe fez cargo das proposições contidas na carta que escreveu ao bispo do Japão, senão também de outras mais que se lhe imputa haver proferido em diferentes conversações, e sobretudo de alguns livros que teve pensamento de escrever, e das matérias e assuntos deles.

Provará que sobre todas as coisas sobreditas lhe foram feitas várias perguntas, e se lhe argüíram erros e conseqüências absurdas, a que ele também deve responder e satisfazer, com o que acresceram e se aumentaram muito as ditas matérias.

Provará que depois dos ditos seus livros, ou pensamentos de livros, assuntos e proposições de que haviam de constar, serem assim arguidos e censurados, fica mais dilatada a matéria e prova deles, do que se com efeito os compusera, por ser em juízo contraditório, de que podem ser exemplo todos os autores que fizeram apologias em defensa de suas obras, ou de uma só proposição que lhe quiseram condenar.

Provará que as ditas matérias, de que há de dar razão, pela qualidade delas, são ainda mais dificultosas e dilatadas, e requerem muito mais tempo para a sua defesa. Porque:

Provará que as ditas matérias são de coisas e sucessos futuros, os quais só se podem provar pelas profecias dos profetas canônicos do Velho e Novo Testamento, e de outras pessoas insignes em espírito de profecia, assim antes como depois da lei da graça, as quais profecias todas de sua matéria são escuras e envoltas em metáforas e enigmas de mui dificultosa inteligência, nas quais trabalharam os engenhos dos mais doutos homens do mundo em muitos séculos, ficando muitas delas sem serem entendidas.

Provará como no entendimento que ele suplicante dá a muitos lugares dos santos profetas, não só é necessário procurar a sua explicação, senão também refutar algumas opiniões e explicações antigas, por serem de autores gravíssimos, e mostrar como os ditos autores não alcançaram o verdadeiro sentido delas, e a razão por que o não alcançaram, nem puderam alcançar em seus tempos, que é matéria que inclui as maiores dificuldades da cronologia, e mais exata lição e erudição da história sagrada, eclesiástica e profana, e igual conhecimento das opiniões, que eram ordinárias em diferentes idades da Igreja, e dos santos padres, as quais com o tempo se declararam mais, e constou depois não poderem ser verdadeiras, dispondo assim a providência divina, para maior glória sua, e da sua Igreja.

Provará que muitas das ditas matérias, ou quase todas, são novas, e não vulgares, nem tratadas ex professo pelos doutores, com que vem a ser precisamente necessário a ele suplicante, havê-las de tratar desde seus princípios, e abrir novos fundamentos, e estabelecer a verdade ou probabilidade deles todos, conforme as sagradas escrituras, e santos padres, e desfazer qualquer repugnância que nas mesmas escrituras possa haver contra os ditos fundamentos, que é obra de imensa compreensão e estudo, e que envolve tudo o que sobre as ditas escrituras está escrito, assim pelos doutores antigos, como pelos modernos, assunto que ele suplicante de nenhum modo pudera compreender, senão com quarenta anos que tem de estudo da sagrada escritura, buscando nela não as flores, senão as raízes, e trabalhando por alcançar o verdadeiro, genuíno e literal sentido com que foram escritas e ditadas pelo Espírito Santo, o qual em todas as idades da Igreja foi descobrindo novos tesouros de inteligência, com que mais alumiar e ilustrar, e foi o principal fim porque ordenou que as ditas escrituras, principalmente as profecias, fossem tão escuras.

Provará que as ditas matérias são muito notáveis e esquisitas, porque pretendem ou pretendia ele suplicante mostrar que na Igreja de Deus há de haver um novo estado, felicíssimo, e diferente do presente e dos passados, em que no mundo todo não há de haver outra crença, nem outra lei, senão a de Cristo, para complemento do qual estado se hão de converter todos os gentios, e se hão de reduzir todos os hereges, e se há de extinguir totalmente a seita de Mafoma, e hão de aparecer os dez tribos de Israel que estão ocultos em terras incógnitas, e se hão de converter todos os judeus, e há de haver neles maiores santos que os da lei velha, e mais semelhantes aos da primitiva Igreja, que serão grandes zeladores e pregadores da lei de Cristo, e que neste tempo em que todo o mundo estiver reduzido ao conhecimento da nossa santa fé católica, se há de consumar o reino e império do mesmo Cristo, e que é este o quinto império profetizado por Daniel, e que então há de haver no mundo a paz universal prometida pelos profetas no tempo do Messias, a qual ainda não está cumprida senão incoadamente, e que no tempo deste império de Cristo há de haver no mundo um só imperador, a que obedeçam todos os reis, e todas as nações do mundo, o qual há de ser vigário de Cristo no temporal, assim como sumo pontífice no espiritual, o qual império espiritual então há de ser perfeito e consumado, e que todo esse novo estado da Igreja há de durar por muitos anos, e que a cabeça deste império temporal há de ser Lisboa, e os reis de Portugal os imperadores supremos, e que neste tempo há de florescer universalmente a justiça, inocência e santidade em todos os estados, e se hão de salvar quase pela maior parte todos os homens, e se há de encher então o número dos predestinados, o qual é muito maior do que comumente se cuida, conjecturando-se também o tempo em que estas coisas hão de suceder, e mostrando-se os meios e instrumentos por que se hão de conseguir. As quais coisas todas, como tão raras e maravilhosas, e tão diversas do curso ordinário, com que a providência divina até agora tem governado o mundo, bem claramente se vê quanto estudo requerem, e quão dificultosas sejam de mostrar e persuadir, principalmente havendo de ser provadas e deduzidas de textos muito expressos da sagrada escritura, e autoridades de santos, e gravíssimos autores antigos e modernos, e revelações particulares de santos canonizados, e outras pessoas insignes em espírito de profecia. Pelo que tudo se vê clara e evidentemente, que o tempo que se tem sinalado a ele suplicante para a prova da sua defesa é muito desigual e desproporcionado, e de nenhum modo suficiente para satisfazer aos cargos que lhe têm dado, os quais não só envolvem todas estas matérias, senão ainda outras de igual peso e dificuldade, que para prova destas se hão de supor e provar, o que tudo ele suplicante deve estudar e trabalhar só por si mesmo, não por meio de procuradores e advogados, como sucede em outras causas de que eles são capazes, e podem suprir o estudo e diligência das partes, como é costume. A que se deve juntar a consideração dos impedimentos do sujeito, e estado dele suplicante, porque além de ser tão enfermo, e de poucas forças para tão excessivo trabalho, é religioso da Companhia de Jesus, religião em que não há privilegiado, e deve acudir a todas as obrigações de seu instituto, e da comunidade, que levam grande parte do dia.

Assim que, por todas as razões sobreditas, consta que ele suplicante até o presente está indefeso, e se lhe não tem dado tempo hábil, necessário e suficiente para mostrar e provar os fundamentos da sua justiça, nem pode conforme a direito algum ser lançado de mais prova, que só poderia ter lugar no caso em que, conforme o mesmo direito, se presumisse que ele maliciosamente, e com dolo queria dilatar sua causa, por não chegar a sentença, e recear os efeitos dela, a qual presunção de nenhum modo tem lugar no caso e pessoa dele suplicante, antes se deve presumir e se conhece demonstrativamente o contrário. Porquanto:

Provará que ele suplicante tem presentado aos senhores inquisidores dez ou doze mãos de papel de questões e discursos sobre as ditas matérias, posto que não acabadas nem concluídas, e de infinitos outros pensamentos pertencentes a eles, que mostram evidentemente o excesso do estudo com que se tem aplicado a apressar a dita sua defesa.

Provará que além dos ditos apontamentos, tem registrado muitos outros, e grande quantidade de livros, para copiar deles as autoridades, e poupar o tempo que se havia de gastar se duas se escrevessem.

Provará que para abreviar as ditas matérias, reconhecendo a imensidade delas, buscou traça, modo e disposição com que as metesse todas em um só discurso, que intitula História do Futuro, que vem a ser como um compêndio de todas as oposições que se devem provar sem a confusão nem as repetições que haviam de ser necessárias, se não fossem assim claras e digestas. E também tomou o disfarce do dito título, para debaixo dele se poder ajudar de alguma pessoa que escrevesse, sem entender o intento da escritura, nem violar o segredo que lhe foi imposto, que tudo são meios de abreviar.

Provará que para achar os livros que lhe eram necessários (por haver perdido parte de sua livraria em um naufrágio, e lhe ficar o resto dela no Maranhão com grande parte de seus papéis e estudos) se resolveu ele suplicante a ordenar por sua mão a livraria do colégio de Coimbra, que estava muito confusa, tomando notícia de todos os livros que serviam a seu intento, como com efeito fez, com excessiva diligência e trabalho.

Provará que além desta livraria, correu e buscou outras de que também tirou livros, e os mandou vir das livrarias do colégio de Évora, e colégio de Santo Antão, e da livraria d'el-rei, e outras particulares, e tem mandado vir de Roma e França outros livros que lá tinha visto, e neste reino se não acham, por meio das pessoas que nomeará, sendo necessário.

Provará como depois que lhe assinaram os três meses de tempo, estudava e escrevia todos os dias até à meia-noite, e se levantava às quatro horas da madrugada, sendo este excesso de aplicação o que o reduziu a lançar sangue pela boca, e pôr a vida em tanto risco.

Provará que ainda no tempo que estava em cama, tinha livros escondidos, pelos quais lia e estudava os espaços que tinha de algum alívio.

Provará que desde o tempo que pediu licença para responder, e lhe foi concedida e mandada, nunca se ocupou em outra alguma coisa, nem foi possível acabar-se com ele que pregasse, nem ainda fizesse uma prática dentro no colégio, por mais instâncias que por isso fizeram pessoas de grande respeito e seus próprios superiores, o que tudo são evidências de fato de que ele suplicante procurou sempre apressar a resolução da sua causa, e fez extremos por isso, contra o qual fato e evidência não tem lugar nenhum gênero de presunção; e quanto ao que por outra qualquer via se deve ou pode presumir dele suplicante, neste caso todas as presunções fazem em seu favor, e estão clamando, que nenhuma coisa mais se deve procurar e desejar, que a breve resolução desta causa. Porque:

Provará que enquanto a dita resolução se dilata, está ele detido em Coimbra com contínuo risco de sua vida, como tem mostrado a experiência, e o julgam todos os médicos, por lhe ser muito estranho e nocivo o dito clima.

Provará que com a dita dilação periga também muito o seu crédito, sendo chamado muitas vezes ao Santo Ofício por oficiais dele, a qual publicidade, que se não pode evitar com nenhum segredo e cautela, necessariamente há de causar suspeitas, as quais bastam para muito o desacreditar.

Provará que outrossim com a dita dilação não só tem impedida a liberdade de se tornar para sua província, mas também se seguem os gastos que tem feito em todo este tempo, e há de fazer necessariamente, por estar em província e colégio estranho.

Provará que assim mesmo tem impedida a impressão de muitos tomos de sermões que estava alimpando, e são pedidos de todas as partes da Europa, e juntamente os interesses das ditas impressões, que são muito consideráveis, pelo grande gasto que têm os ditos seus sermões, os quais interesses ele suplicante tinha aplicado às missões do Maranhão, e por falta deles estão os missionários padecendo grandes misérias, e faltas do necessário, com que também se impedem grandes serviços a Deus, e fruto das almas.

Provará que pelo dito impedimento, e ele não sair com os seus, se têm impressos dois livros de sermões em Castela, por várias cópias mal escritas, e tomadas de memória, que andavam em seu nome, com infinitos erros, e muitas coisas diminuídas, e outras acrescentadas, e todas indigestas, confusas, e fora de seu lugar, e por palavras não suas, com que tem padecido muito sua opinião, e posto que deseja e é instado a que acuda a esse descrédito, imprimindo os seus verdadeiros sermões, está impossibilitado de o fazer. Pelos quais inconvenientes de dano de vida, saúde e liberdade, crédito, e ainda da fazenda, bem se deixa ver quanto mais presumir, que não pede ele suplicante a dilação deste impedimento, antes procura o desembaraçarse dele o mais depressa que for possível. Nem obsta contra a verdade desta resolução, o conhecimento que tem das censuras ou qualificações que lhe foram declaradas, ou o receio da resolução e sentença delas, porque está ele suplicante, e esteve sempre mui confiado na justiça e inteireza deste sagrado tribunal, e nos fundamentos e razões da sua causa, como podem testemunhar os ministros, diante dos quais tem dado razão dela. Porquanto:

Provará que para defesa de tudo quanto até agora se lhe tem perguntado, argüido ou censurado, tem ele suplicante muitos textos da sagrada escritura, autoridades dos santos padres, e fundamentos teológicos, e exposições de doutores gravíssimos, não só antigos, mas modernos, que imprimiram de cem anos a esta parte nos quais há de mostrar tudo o que nas suas proposições se estranha. Assim mais

Provará que a causa de serem estranhadas as suas ditas proposições é somente por não serem vulgares nem tratadas ex professo pelos doutores, e por se não ter notícia dos textos, autoridades, e razões em que ele as funda todas, com grande concórdia e harmonia das escrituras sagradas, as quais na suposição contrária se podem mui facilmente entender, e por isso se acham nos comentadores dos profetas tantas incoerências e ainda implicações, que ele tem advertido e mostrado em seus lugares, e não só tem ele suplicante por si a segurança de seu juízo, que nas coisas próprias se pode enganar, senão também o testemunho de outros mui qualificados e livres de todo o afeto. Porque

Provará que comunicando em diversos tempos o assunto e conclusões das sobreditas matérias a várias pessoas das mais doutas da sua religião, portugueses, espanhóis, italianos e franceses, todas aprovaram o dito assunto, e os fundamentos dele, posto que reconheceram que ao princípio havia de ter alguma contradição como a tiveram sempre todas as coisas novas e grandes, ainda aquelas que depois foram definidas de fé, permitindo-o e coordenando-o assim a providência divina, para maior prova e confirmação da verdade ou probabilidade delas. E houve entre as pessoas doutas quem se ofereceu a escrever e compor o dito livro ou livros, vistas as indisposições e ocupações dele suplicante, se ele o quisesse consentir, e dar e apontar os textos e fundamentos de que tinha feito estudo, e algum houve que considerando a grandeza e importância de muitas das ditas matérias, e a utilidade que do conhecimento delas se pode seguir à universal Igreja, e conversão de muitas almas dos ateus, gentios, judeus e de todo o gênero de hereges, julgou e disse que eram merecedoras as ditas matérias de que na Igreja se fizesse um concílio para maior qualificação delas. Assim, está tão fora ele suplicante de entender que depois de vistos os fundamentos das suas proposições sejam condenadas ou reprovadas, que antes confia e espera da justiça e zelo deste sagrado tribunal, como tão principal coluna da fé, piedade, reformação dos costumes, conversão e remédio da infidelidade que o exortem e mandem os senhores inquisidores a ele suplicante continue e se aplique à dita obra, e lhe dêem todo o favor e ajuda para isso, assim pelo dito serviço e glória de Deus e da universal Igreja, como pela honra e estimação deste reino, que é bem conheça os fins por que Deus o tem escolhido para dilatador de sua fé, e também para confusão e desengano de seus inimigos.

E para que ultimamente conste a vossa senhoria quanto ele suplicante deseja dar brevemente razão de si, de seus fundamentos, e das opiniões e proposições em que se repara, e que disposto está a abreviar a resolução da sua causa, e saber pelo juízo deste sagrado tribunal se deve continuar ou desistir do pensamento da dita obra, ou emendar algumas coisas dela, vista a dificuldade ou moral impossibilidade de responder em breve tempo por papel, por todas as causas acima alegadas, assim da parte do sujeito, como da qualidade e quantidades das matérias: representa ele suplicante e pede a Vossa Senhoria, como por vezes tem representado ao senhor inquisidor Alexandre da Silva, se lhe conceda licença para responder verbalmente diante de vossa senhoria, ou dos senhores inquisidores desta cidade, e das pessoas mais qualificadas e doutras que vossa senhoria para isso nomear, para o que ele se oferece logo depois da sua convalescença, e ainda antes de estar bem convalescido, porque falando e respondendo às dificuldades se pode examinar em pouco tempo o que por papel se não pode deduzir, se não em muito larga escritura, e com grande disputa de argumentos, sem os quais se não podem fundar e defender as conclusões que em cada uma das matérias são muitas, e cada uma delas depende de outras suposições, também não tratadas ex professo nos livros, pelo que é necessário que ele as trate e dispute desde seus primeiros princípios e fundamentos, sob pena de não ser entendida a certeza ou probabilidade delas, com que ele suplicante fica fazendo da sua parte quanto é possível, e oferecendo-se a muito mais do que em direito é obrigado para abreviar a decisão da sua causa, cuja dilação de nenhum modo se lhe pode atribuir, nem imputar, pois não está por ele, porquanto se oferece, ou a responder logo verbalmente, ou a responder por escrito com o tempo necessário. Pelo que tudo

Pede, representa e requer ele suplicante a Vossa Senhoria primeiramente se lhe dê o tempo e descanso necessário para acabar de convalescer, e também licença para o fazer na vizinhança desta cidade, em lugar aonde cheguem os ares marítimos, vista a necessidade que deles tem, conforme o parecer de todos os médicos, e a experiência das contínuas enfermidades que neste clima padece, e o receio de tornar a recair com tão evidente perigo de vida, a qual vida lhe não deve a justiça querer tirar, antes é obrigação e conveniência da mesma justiça conservá-la aos réus, para que, vivendo,, conste da sua culpa ou da sua inocência.

Em segundo lugar pede e requer se lhe inteirem os três meses de tempo que se lhe tinha assinado para sua defesa, pois estando legitimamente impedido em dois dos ditos três meses em todo o direito se lhe devem restituir, ou, falando mais propriamente se lhe devem deixar continuar, pois os ditos dois meses legal e efetivamente ainda não concorreram, nem passaram.

Item pede e requer que além dos ditos dois meses se lhe dê todo o mais tempo necessário, vista a quantidade e qualidade das matérias e suas dependências, que tem alegado, o qual tempo ele não pode medir, nem taxar, por ser coisa incerta, e ser muitas vezes em semelhantes obras necessário mais tempo do que se cuida, por ocorrerem novas dificuldades e dependências que a princípio se não consideravam, principalmente em sujeito tão achacoso e de tão pouca e tão inconstante saúde como a sua.

Outrossim pede e requer se lhe dê vista distintamente e por papel das proposições ou pontos em que houver a maior dúvida, e os fundamentos e razões pelas quais cada uma das ditas proposições é ou parece deve ser condenada ou censurada, e os autores (se alguns há) que as impugnam ou censuram, porque desta maneira ficará a resposta das ditas proposições muito mais resumida, abreviada e fácil, e não lhe será necessário a ele suplicante excogitar todas as dúvidas que podem ocorrer nas ditas matérias para satisfazer a elas, bastando somente satisfazer e responder às que lhe forem apontadas, a qual vista se lhe deve de direito dar a ele suplicante sob pena de ficar indefeso, porque nem ele pode adivinhar os fundamentos por que suas proposições foram censuradas, nem os juízes julgar se têm suficiente resposta ou solução enquanto se não dá vista delas a quem tem obrigação de lhe responder. Na dita vista, calando o nome do qualificador, não há inconveniente algum, antes grande justificação e crédito da justiça, pois de outro modo se não pode conhecer inteiramente a verdade, que é só o que se deve pretender, e até no tribunal divino, cuja ciência, verdade e juízo são infalíveis, se consente e admite este requerimento, o qual fez Jó ao mesmo Deus, quando disse Indica mihi cur me ita judices (Jó X - 2), nem se pode dizer que este requerimento é intempestivo, pois o fez ele suplicante ao senhor inquisidor Alexandre da Silva desde o dia em que lhe foi dado o libelo, e lhe foi respondido que não era estilo, a que ele replicou que não será estilo em outros casos, mas neste seu o deve ser, porque é mui diverso, e se lhe deve de direito natural, pois ninguém se pode defender de armas invisíveis, que muitas vezes se formam: Ut sagittent in ocultis immaculatum (S. LXIII - 5). Encubra-se embora a mão, mas não se encubra a seta.

Finalmente, em qualquer dos sobreditos casos pede e requer lhe sejam outra vez entregues os papéis de seus apontamentos e respostas que tinha principiado, os quais levou ao santo ofício obrigado de seus mandados somente para que constasse aos senhores inquisidores da diligência e aplicação com que ele suplicante lhe tinha obedecido, e do muito que tinha trabalhado, e não para fim e via de se defender com os ditos papéis, imperfeitos, mutilados, confusos, e informes, e sem disposição, nem conclusão alguma, e que somente são as matérias e os materiais que aí ia ajuntando, e começando a dispor para a sua defesa, assim como as pedras que se vão lavrando e ajuntando, ainda que delas se hão de fazer os muros, enquanto não estão lavradas, e unidas, e postas em seu lugar, não podem servir de defensa. E se acaso entre os ditos papéis houver alguma coisa que seja menos conforme à verdade de sua doutrina, ou da que se deve seguir, protesta que tal ou tais coisas se não devem reputar por suas, porque nem ele reviu os ditos papéis, nem se lhe deu um momento para isso; e nem tudo o que os autores ajuntam em seus apontamentos é para o seguirem ou afirmarem senão a também para o refutarem e impugnarem, e depois de acabada a questão, e ainda toda a obra, então se faz a última eleição do que resolutivamente se há de seguir. E porque pode acontecer que para este incidente (como deve ser sem dúvida para a causa principal) sejam consultados alguns teólogos, e outras pessoas doutas, pede e requer a Vossa Senhoria ele suplicante, que assim nesta como em qualquer outra matéria tocante a ele, não sejam consultadas, nem admitidas pessoas que por alguma via lhe possam ser suspeitas, sendo certo que fora e dentro de sua religião tem muitos êmulos, os quais não pode nomear em particular porque não sabe quais hajam de ser, e somente pode dar, como dá por suspeitos em geral aos religiosos do Carmo pelas controvérsias que teve com eles no Maranhão, sendo os ditos religiosos os principais movedores da sua expulsão, e dos outros religiosos da Companhia que lá estavam por haverem tomado umas cartas dele suplicante em que informava contra eles a sua majestade em matérias graves e de muita importância, conforme as ordens que tinha do dito senhor, e provará as ditas suspeições largamente sendo necessário.

Item dá por suspeitos em suas causas aos religiosos de São Domingos, assim pela emulação e oposição geral que têm com os da Companhia sobre opiniões em matérias de letras, como particularmente desde anos a esta parte com a pessoa dele suplicante por haverem entendido que ele em um sermão da capela desestimara ou reprovara seu modo de pregar apostilado, pela qual razão os ditos religiosos se deram por mui ofendidos dele, e o mostraram publicamente nos púlpitos, e em papéis particulares que contra ele escreveram, sendo os mais empenhados neste sentimento as pessoas mais graves da dita religião, como é notório e provará sendo necessário.

E porquanto à sua notícia tem chegado que em casos de opiniões novas, consulta este santo tribunal algumas vezes os ministros da cúria romana:

Pede e requer outrossim a vossa senhoria ele suplicante, que os ditos ministros não tenham parte na decisão e qualificação da dita sua causa, e pontos dela, e muito menos nos que pertencem ao papel referido, escrito ao bispo do Japão, porquanto ele (enquanto lhe é lícito) dá por suspeitos aos ditos ministros nas ditas matérias, e sendo necessário provará as suspeições, posto que sejam públicas e notórias as causas delas, que são entre outras, as seguintes:

1.ª Porque no dito papel se fala em castigos de Itália, e invasão da mesma cidade de Roma, as quais coisas posto que estejam anunciadas nas escrituras explicadas pelos santos padres, e por pessoas insignes em espírito de profecia, e seja justo e conveniente que as ameaças de Deus se saibam, e não se encubram, para que se evitem com a emenda, que é o fim por que o mesmo Deus antecedentemente as revela, contudo, naturalmente são odiosas para a nação e pessoas sobre que caem, principalmente se são escritas por homem estranho.

2.ª Porque no dito papel se prova ou pretende provar não só o estabelecimento do reino e coroa de Portugal, senão os aumentos e felicidades dele, e haver de ser império universal, que do mesmo modo é matéria odiosa a todas as nações estrangeiras, e particularmente aos ditos ministros, dos quais se tem conhecido em espaço de vinte e cinco anos, quão pouco afetos e inclinados são ao estabelecimento e conservação dos príncipes e coroa de Portugal, quanto mais a tão extraordinária grandeza, como a que no dito papel se lhe prometa.

3.ª Porque no dito papel se infere a ruína de Castela, e haver de ser vencida e dominada pelas armas portuguesas, que é outra maior razão para haver de ser odioso aos mesmos ministros, os quais são tão conhecidamente favorecedores da parcialidade de Castela, e tão obrigados a ela, e mais castelhanos no afeto que os mesmos castelhanos. E tanto é mais forçosa esta razão, quanto lhe consta a ele suplicante, e o provará (sendo necessário) que o dito papel passou a Castela, e que pessoas de grande autoridade e letras, entre as quais foi o bispo de Tui, julgaram que provava e persuadia o intento, e que como tal se devia procurar que fosse proibido, assim para que os portugueses com aquela esperança se não animassem a perseverar no que eles chamam rebelião, como também para que os castelhanos não cressem nas nossas chamadas felicidades por ele.

Ultimamente pede e requer ele suplicante a vossa senhoria que estes seus requerimentos se acostem ao processo de sua causa, e que nela se cumpra tudo aquilo em que estiverem defeituosos, e tudo o mais que pode cumprir ao bem e melhoramento de sua justiça, porquanto ele suplicante não tem notícia nem prática alguma de requerer nos juízos, e muito menos dos estilos deste sagrado tribunal, nem do modo que nele se deve falar e requerer. E porque o respeita, reverencia e venera, como ele merece, pede perdão de algum erro, se por ignorância o houver cometido neste papel, como pessoa totalmente alheia desta profissão, e que não tem procurador que o encaminhe, pedindo e requerendo pela mesma razão a vossa senhoria lhe mande nomear por procurador um dos ministros deputados do santo ofício, que, com as letras e inteireza que professam, possa defender a justiça de sua causa.

Isto é o que de presente se lhe oferece a ele suplicante representar a vossa senhoria. Esta é a causa pela qual há tantos tempos se vê tão molestado, a qual causa e motivos dela pede com toda a submissão aos senhores inquisidores se sirvam considerar com a atenção que merece, pois todas as culpas por que se lhe faz cargo, e pelas quais o têm posto em apertos de perder a vida, como se foram matérias mui perigosas ou de grande escândalo dos fiéis e dano da Igreja, se atentamente se consideram são todas glória, estimação e felicidade da mesma Igreja, dilatação da fé, salvação das almas e exaltação do nome reino de Cristo, e favores do mesmo Cristo a Portugal e aos portugueses, a quem deu suas chagas com promessa de fundar nele seu dilatadíssimo império. E se por ocasião destes bens se referem alguns males, são contra os gentios, judeus, hereges e pagãos, ou, para melhor dizer, contra a idolatria, heresia, judaísmo e paganismo, cujo fim e ruína se promete, não tendo lugar nesta conta o castigo da cristandade e perseguição da Igreja, que também se diz precedera às felicidades dela, pois não serão para sua ruína, senão para Deus mais a purificar, reformar e aperfeiçoar conforme o estilo de sua providência. Se estas coisas (como ele suplicante confia mostrar) tem certeza e probabilidade, não há dúvida que são de grande consolação e edificação para todos os fiéis, e de grande glória para o nosso reino e nação. E se carecem da dita probabilidade, e se julgar que não são bem fundadas, o que somente se segue de ele as haver dito ou imaginado, é poder ser censurado de não entender bem alguns lugares da sagrada escritura, que é fragilidade humana que tem acontecido aos maiores doutores da Igreja em muitos textos dela; e ainda na inteligência daqueles em que ele suplicante se funda, terá muito autorizados companheiros, como são todos os autores que seguiram e seguem as mesmas opiniões, os quais não falaram nelas (como ele suplicante em uma carta missiva, e em algumas conversações particulares de pessoas graves e doutas), mas publicaram e estamparam as ditas opiniões, e se estão lendo hoje por toda a cristandade em seus livros sem censura alguma, antes são cada dia mais seguidas e aplaudidas dos escritores mais doutos e literais.

Suposto ser esta a qualidade de sua causa e matéria dela, espera ele suplicante da inteireza e benignidade deste sagrado tribunal, lhe mande vossa senhoria deferir na forma que pede para que sem demasiado aperto em que perigue sua vida e saúde seja suficientemente ouvido de sua razão, e se veja o fundamento de tão gloriosas esperanças; e a pureza de sua doutrina não padeça opinião de menos qualificada do que convém a um religioso da Companhia de Jesus e mestre na sagrada teologia, pregador d'el-rei de Portugal, e ministro seu na cúria romana e outras cortes, confessor nomeado do sereníssimo infante, superior e visitador-geral das missões do Maranhão, com poderes do seu geral, e tão benemérito da Igreja e fé católica, como consta de dez anos que se empregou na conversão da gentilidade, e de muitas disputas que teve com todo o gênero de hereges em França, Holanda, Inglaterra e outras partes, sendo mui conhecido em toda a Europa por sua pessoa e escritos, os quais se lêem e pedem de toda a parte com grandes instâncias, e ele suplicante tem muitos que dar ao prelo, que só (como dito é) se dilatam por este impedimento, e será coisa mui indigna desta opinião, e sem confiança para mais subir ao púlpito, nem se aplicar a outras obras do serviço de Deus a que totalmente se tem dedicado há tantos anos, sendo certo que nos motivos deste seu impedimento, não só teve parte a diligência de seus êmulos, mas também a astúcia do Demônio, que por esta via quis estorvar, como tem estorvado grandes serviços de Deus, que é o que ele suplicante mais sente, e vossa senhoria deve não permitir, senão remediar e atalhar como espera, no que

R.J.E.M.







Um comentário:

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    Comentário Único - demais descrições, na pág. devida - Clavis Prophetarum
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    Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.

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