domingo, 15 de setembro de 2013

Profecia - Livro 4






IV
Reflexões sobre o papel intitulado
Notícias Recônditas do Modo de Proceder do Santo Ofício
com os seus presos: pelo Padre Antônio Vieira


1.° Blasona a inquisição de imitar a Deus, de seguir os vestígios da sua misericórdia, e de exceder os carinhos da sua indulgência; porém ninguém se deixa persuadir vendo a jactância desmentida pela experiência. Dizem que Deus foi inquisidor de Adão e de Eva, por haver comido o pomo vedado: é verdade que lhe fabricou o processo; é sem dúvida que fulminou rigorosa sentença de morte; é certo porém ainda que Deus era parte, testemunha e juiz, depôs a pretensão da serpente para não desanimar aos réus: deixou de ser testemunha para que não desesperassem da sua misericórdia, vendo-se convencidos; e exercitou somente o ofício de juiz humano, que tudo ignora, não de divino, que tudo vê e tudo penetra. Pergunta pois a Adão onde está? - Ubi es? - mostrando ignorá-lo; e chegando a examinar o delito, faz-lhe um interrogatório sugestivo, indicando-lhe tacitamente o que presumia, e insinuando-lhe juntamente, que, confessando com sinceridade o excesso, poderia lograr os favores da sua divina clemência: porém nada disto sucedeu; porque Adão não confessou com a sinceridade que devia, alegando, por desculpa, que sua mulher o havia induzido, como se a indução de uma mulher houvesse de prevalecer a um preceito divino, por onde, indignado Deus, fulminou contra ele e contra seus sucessores irrevogável sentença de morte, não havendo misericórdia para um contumaz impenitente.

2.° Assim parece tudo isto à primeira vista; porém examinada a sentença artigo por artigo, consta dela que os favores da misericórdia atropelaram em certo modo os rigores da justiça.

3.° Diz Deus em a sentença que há de o homem comer os frutos da terra com tristeza todos os dias de sua vida: e quantos há, têm havido, e hão de haver, que comem, têm comido, e comerão com sossego, com alegria, e com descanso? Diz que há de comer erva, como se fora maldição, quando as ervas que comem os homens são gostosas e regaladas: diz, finalmente, que com o suor do seu rosto comerá o pão: não há dúvida que muitos suam para o comer; porém também é certo que muitos o comem sem suor, e o que resulta destas reflexões é que a maldição de Adão não se executa em tudo, nem em todos; porque as enormes enfermidades que padecemos, e as intempestivas mortes que vimos padecer, são efeitos da superfluidade da gula, dos estímulos da concupiscência, da insaciabilidade da ambição, da inveja das fantasias, e do desvanecimento, que, como densas nuvens e obscuras, ofuscam o sol do nosso entendimento, de forma que, não podendo chegar com os raios do seu discurso a dissipar o denso destas nuvens, fica a nossa constituição tão alterada, e tão distraída de suas naturais funções, que, em lugar de criar sangue benéfico para dilatar a vida, cria letífero veneno para acelerar a morte.

4.° Não menor clemência aparece em a sentença de morte, que chamamos inevitável: pela cláusula que declara, que havia de morrer no mesmo dia que comesse o fruto proibido, parece que o castigo, que era a morte, devia suceder imediatamente ao excesso; porém não foi assim, porque não morreu Adão senão depois de 930 anos, sinalando-lhe em todo este intervalo de tempo por cárcere todo o orbe terrestre; por alimento todos os saborosos e delicados frutos; por criados todos os animais domésticos e silvestres; e finalmente, por luz o sol e os astros. Isto é o que fez Deus com os seus delinqüentes; examinemos agora o que fazem os inquisidores com os seus réus.

5.° Disse - réus - e não disse bem, porque nem todos os réus são presos, nem todos os presos são réus; porém como em todo o tempo que corre entre a prisão e a sentença, todos são tratados igualmente com a mesma severidade e opressão, é força coligir que desde o instante da prisão os têm os inquisidores por condenados na sua idéia; porém enfim se descobre seu abuso, porque a primeira sentença imaginária dos mesmos inquisidores, que os maltratam no cárcere, como réus, é derrogada pela segunda, que os qualifica e trata como inocentes, restituindo-lhes honra, liberdade e fazenda.

6.° Vedes aqui as ações da inquisição diametralmente opostas; porque, antes de lhe constar da culpa do preso, trata-o como réu, contra toda a razão, contra toda a justiça, e contra toda a humanidade, e depois de cerrado o processo o declara livre por inocente.

7.° Responderão que onde há indícios de delito se podem ou devem tratar os presos como réus, assegurando-os em o cárcere: não impugno isto, porém seja cárcere que os segure como pessoas indiciadas, não que as atormente como convencidas, condenadas e contumazes, como fazem, enterrando indiferentemente a uns e outros em calabouços subterrâneos, obscuros, e asquerosos por si, e pela muita imundícia que os faz infeccionados, sem que os alimpem senão uma vez cada quinze dias, ou três semanas.

8.° Disto procede que respirando os miseráveis presos um ar imóvel, infeccionado de crepúsculos imundos, que saem de tanta corrupção, sem jamais gozar o beneficio de uma saudável ventilação, altera-se a constituição do sangue, de forma que, perdendo a saúde, acham-se atormentados de incuráveis achaques e enfermidades, as quais muitas vezes se terminam com a morte intempestiva, ocasionada de mau-trato, acompanhado do temor de perder a honra, a fazenda e a vida, sem culpa nem pecado, como muitas vezes sucede: é força, pois, que esse sangue inocente esteja dando vozes e bramidos diante do tribunal de Deus, exclamando contra juízes, que, sem razão e sem justiça, são causa de antecipar-lhe a morte: é força que Deus sumamente irritado desembainhe a espada da sua vingança contra juízes, que, atropelando as leis divinas e humanas, atrevem-se a jactar-se, que são inquisidores como Deus! Ó temeridade! Ó imprudência!

9.° Apure-se este assunto, aclarando-se mais esta pretendida semelhança.

10.° Concede-se impunidade algumas vezes em os tribunais humanos aos cúmplices do delito, para descobrir por eles o principal malfeitor, e outras vezes (ainda que muito poucas) ao mesmo malfeitor, de donde resultam os bons efeitos, de que, descobertos os verdadeiros delinqüentes, fica a porta cerrada a falsas acusações, que poderiam forjar-se por interesse, por malicia, ou por vingança, e ainda que descoberto o delito pelo malfeitor, ou pelos cúmplices, fica o delinqüente ou o cúmplice absoluto ou premiado: é sem embargo muito acertado este expediente, ficando por esta via os bons seguros das perseguições dos maus, e mais val livrar um delinqüente, que castigar um inocente, porque o perdão ou clemência que se usa com isto não é a fim de salvar o ímpio, mas para que não pereça o justo, quando condenando ao inocente fica o juiz também constituído delinqüente, por haver cometido dois delitos ao mesmo tempo, um por não castigar o mau, outro por condenar o bom.

11.° A impunidade, pois, procede da ignorância do juiz, que, como homem, não pode penetrar o encoberto; porém, não havendo coisa oculta para o divino tribunal, segue-se que no seu foro é supérflua a impunidade; e sem embargo disso há e houve, e para que ela tivesse lugar, fingiu Deus ignorar o que não podia deixar de saber, para livrar um delinqüente, quando os inquisidores fingem saber o que ignoram, para ter lugar de condenar ao inocente.

12.° Pergunta Deus a Adão onde está? - Ubi es? - como que se o ignorasse: pergunta-lhe se comeu do fruto vedado, como se duvidasse disso, para que, confessando espontaneamente, parecesse que havia dito a Deus o que ignorava; e por esta via alcançasse, senão total impunidade, ao menos alguma considerável diminuição na pena; mas não soube lograr as vantagens da ocasião, não soube aproveitar-se dos benignos oferecimentos da divina clemência. Da mesma traça usou Deus com Caim pelo fratricídio: fingiu ignorar a morte de Abel, para dar lugar ao arrependimento de Caim: este, o mais instruído pelo mau sucesso de seu pai, confessou ingenuamente ser seu delito inexpiável - major est iniquitas mea, ut remitatur - pelo que alcançou que a pena de morte se comutasse em transmigração - mobilis, et vagus eris in terra.

13.° Não parou aqui a divina misericórdia; em a mesma sentença condenatória assegurou o sustento aos delinqüentes, e depois de haver pronunciado, publicado, e notificado, lhe escusou a afronta que padeciam, vendo-se despidos, vestindo-os com túnicas de couro.

14.° Digam pois os presos da inquisição se podem alcançar sustento ou vestido pelo seu dinheiro próprio, antes de constar se são réus ou inocentes pelo processo?

15.° Desculpar-se-ão os inquisidores, alegando que sendo a apostasia crime - Lesae magistatis divinae - bastam os indícios para constituir ao acusado apóstata em parte, podendo-se verossimilmente crer que, quando não seja verdade tudo o que depõe a testemunha, será ao menos verdade que o delatado disse, ou fez coisa que obrigou a testemunha a delatá-lo, para descarregar a sua agitada consciência; e como tudo o que toca a ofensa da honra de Deus é sumamente delicado, e sumamente escandalizado ao seu próximo com alguma palavra ou obra, merece ao menos a mortificação que padece no mau-trato do cárcere, ainda que não chegue a merecer maior pena. Vejamos pois o que manda Deus em delitos de apostasia:

16.° Cum inventus fuerit in medio lui intra unam portarum tuarum; quas Dominus Deus tuus dat tibi, vir, sive mulier, qui facerit, quod malum est in oculis Domini Dei tui ut transgrediatur pactum ejus, fuerit que, et coluerit Deos alienos, et adoraverit eos, solem, aut lunam, aut quemcumque exercitum celorum, quod ego non proecepi, et nunciatum fuerit tibi, audieris, que, et inquires bene, et ecce si fuerit verum, et certum verbum, et facta fuerit abominatio ista in Israel educes virum illum, aut mulierem illam, qui fecerunt remillam iniquam virum in quam, aut mulierem, et obruas eos lapidibus, donec moriantur.

17.° Encarrega Deus que, sendo um homem acusado de apostasia, que se inquira e especule com muita exação e cuidado, de modo que conste aos juízes, que a denunciação é verdadeira e certa, e não conjetural e presuntiva, não coligida da identidade do sangue; deduzindo tem sangue de moiro, ou de judeu: logo é crível que observe a lei de Moisés ou de Mafoma.

18.° Dos mesmos termos e expressões usa a escritura sagrada, tratando da apostasia de uma cidade ou povo, encarregando as mesmas cautelas, não só em geral, mas em particular.

19.° Debes inquirire, investigare, et interrogare deligenter si verum est et certum verbum illud, quod facta sit abominatio ista in medio tui, percutiendo peruties: habitatores civitatis illius in ore gladii.

20.° Considere-se, pois, se processos fundados sobre depoimentos de testemunhas não contestes, que não receiam castigo, ainda que sejam falsos; que não sentem que se lhes prove a coartada, incógnitas totalmente ao réu, com quem, não só os não confrontam, mas nem ainda os nomeiam; que pela maior parte são vis, corruptíveis, néscios, e se talvez são homens de honra, depõem de outros, para se livrar de si, se estão presos; ou para que não os prendam, se estão livres, obrigando-os o temor de perder a honra, os bens e a vida, a forjar na sua idéia entes de sem razão para salvar a mais importante destas partes essenciais da humana felicidade, ou todas se for possível.

21.° Se se devem admitir estas testemunhas em um tribunal que se jacta exercitar a mesma jurisdição de Deus! Se seus depoimentos têm as circunstâncias que Deus manda em os precitados textos do Deuteronômio! Se padecem inumeráveis exceções tanto os depoimentos como as testemunhas! Se tais testemunhas e tais atestações bastam para constituir réu ao deletado; para obrigar aos juízes a tirar-lhe a fazenda, a honra e a vida com uma morte ignominiosa e cruel, fazendo aos pais desgraçados, aos filhos órfãos, às mulheres viúvas, e a todos pobres e miseráveis, obrigando-os a mendigar o sustento pelas ruas e pelas portas, e a padecer por falta de abrigo as insofríveis inclemências do inverno e os perniciosos calores do estio! E presumem que o mundo julgue e chame caridade e misericórdia ao que é crueldade e inumanidade? Isto não pode ser.

22.° Nem vai alegar que havendo a Igreja renunciado a lei de Moisés, que crê não ter vigor de obrigar a sua observância depois do - actum est - e por conseqüência não poder argüir deste para aquela, porque esta renunciação não compreende a moral da lei mosaica, como se poderá provar por infinitas autoridades dos mais eminentes teólogos e casuístas da mesma Igreja Romana, em a qual, não obstante que tenha por artigo a abolição dos preceitos do Pentateuco, retém contudo a proibição de contrair o matrimônio em os mesmos graus de afinidade e consangüinidade proibidos em a lei de Moisés em os quais não tem faculdade o papa de dispensar, por serem de direito divino, sendo inviolável dogma da Igreja que o papa - non potest dispensare de jure divino - não sendo razão que o inferior revogue o mandato do superior; e ainda que quotidianamente se vêem dispensações pontifícias para certos graus de consangüinidade, não se estendem mais que aos proibidos pela Igreja chamados por isso - de jure positivo.

23.° Ficam pois os inquisidores, conforme isto, obrigados a examinar as testemunhas em forma que irrefragavelmente conste ser o delito certo, e verdadeiro, e incontestável, o qual não se pode conseguir sem fazer exata pesquisa da qualidade das testemunhas, informando-se se são homens de inteireza e bondade; se são vis por sangue ou por ações; se são amigos ou inimigos do delatado, podendo suceder que lhe levantem um falso testemunho por ódio, por inveja, por malicia, por vingança, e talvez por temor de os não prenderem; e se o estão, por evitar por essa via a condenação, julgando-a certa, se não depõem daquela pessoa; e, por dizer tudo em uma palavra, devem inquirir - de testium vita, et moribus - e parecendo ser os depoentes incapazes de exceção, admitidos seus depoimentos dar traslado ao réu, manifestar-lhe as testemunhas, para ver se tem que dizer contra elas, provando-lhes a falsidade, e provando-lha castigá-los com toda a severidade, pois claramente o manda Deus em o Deuteronômio cap. 29, v. 13, dizendo que tendo uma testemunha deposto falsamente contra seu próximo, que padeça o denunciante a mesma pena que havia de padecer o que constituía réu.

24.° Este mandato compreende todo o gênero de delito, não se coligindo por este texto nem por outro, ficar excetuada a apostasia desta importante precaução.

25.° O mesmo afirmam os casuístas dizendo que a testemunha que mediante o seu falso testemunho, dado de propósito, pôs a algum próximo em perigo de vida, deve retratar-se, ainda que se exponha a padecer a mesma pena.

26.° Atqui scienter falso testimonio alium in discrimen adduit, tenetur se retractare etiam cum periculo subendae similis paenae si spera hanc retractationem prefecturam.

27.° Aqui vemos duas leis, uma divina, outra humana, ambas extintas em as inquisições de Espanha e Portugal, onde não há pena assinalada para testemunhas falsas, alegando elas em seu abono que se castigassem os caluniadores, não houvera quem se atrevesse a denunciar, pelo receio de semelhante pena.

28.° Não sei quem tem autoridade de anular um preceito de tanta conseqüência. E se acaso disseram que não obriga por ser judicial e não moral, como fica dito § 23, não sei, torno a dizer, como há quem se atreva a opor-se ao ditame de uma lei tão justa e tão necessária para a sociedade humana; sendo patente que esta indulgência é sumamente perniciosa e prejudicial, ficando por ela a fazenda, a liberdade, a fama e a vida dos bons exposta à discrição do ódio, da malícia, da ambição e da vingança de homens iníquos e facinorosos, que não têm consciência nem a conhecem.

29.° A imensidade da monarquia de Espanha a circunscreve Justo Lipsio autor muito grave, em a circunferência de um certo período, o qual ponho aqui fraseado por uma elegante pena italiana.

30.° Seja glória do valor e merecimento da piedade espanhola, a felicidade da fortuna de haver-se dilatado tanto os termos da sua monarquia e império: é certo, que é tal, que contrapesando-o o erudíssimo Justo Lipsio com o grego, persiano, medo e romano, pode dizer sem nota de lisonja, que - post hominis natos nulli unquam majus obtigit imperium - id est, que depois que há homens em o mundo, jamais se viu tão dilatado império.

31.° Desta verdade é testemunha o mesmo sol que tem por eclíptica os reinos do ibério monarca, porque não sabe nascer senão dos seus montes, nem morrer senão nos seus mares.

32.° É pois incontestável que este imenso império, ainda que considerado parte por parte, não é dos mais povoados; considerado porém coletivamente, compreende um imenso número de vassalos, todos expostos e sujeitos aos rigores da inquisição de Espanha (excetuados os estados de Itália e Flandres) donde infalivelmente nasce a perdição de infinito número de famílias, que perseguidas deste terrível tribunal, e ultrajadas de seus apaixonados ministros e juízes, de honrados e qualificados que eram, ficam a maior e melhor parte sem fazenda, sem honra, e muitas vezes sem vida, destruídas e extinguidas pela inquisição. Daqui nasce o verem-se os reinos de Espanha despovoados, os vassalos pobres, o tesouro real sumamente exausto, e, o que mais importa, a majestade do rei católico despojada de seus fiéis e leais vassalos, como pode observar-se em os foragidos da inquisição, que depois de lhes haver tirado a fazenda, a fama, e muitas vezes a vida, o pai e mãe, irmãos, mulheres, e depois de se verem ignominiosamente desterrados em terras alheias, não deixam de conservar o amor leal e sincero, perfeito e intacto que sempre tiveram a seu pai e à sua pátria, com tanto excesso e extremo, que não é crível, senão a quem quotidianamente o vê e experimenta. O mesmo que digo de Espanha, afirmo de Portugal sem distinção nem exceção. Tornemos agora ao nosso tema.

33.° Intitulam-se os inquisidores, digo as inquisições de Espanha e Portugal, católicas apostólicas romanas: para que pois as obras não desmintam o nome, é força que imitem em tudo e por tudo a inquisição de Roma, que eles mesmos qualificam e veneram como universal e suprema. já temos manifestado o método da de Espanha; vamos agora ao que sucede na de Roma.

34.° Com quanta mais eqüidade, humanidade e indulgência se governa esta que aquela, e além do que consta pelos cânones e regras da mesma inquisição, o provarei pelo que tenho lido e visto.

35.° Um autor francês, falando da congregação da inquisição de Roma, em este parágrafo traduzido de castelhano dizia assim:

36.° "Esta congregação, ou seja junta da inquisição, julga das heresias e opiniões novas repugnantes à integridade da fé católica, como de apostasia mágica, sortilégios, e outros malefícios, superstições, do abuso dos sacramentos, e da condenação dos livros perniciosos. Este tribunal ainda que severo, se administra com muita eqüidade e integridade, e é governado com muita mais brandura que os de Espanha e Portugal."

37.° O mesmo autor pouco mais adiante na pág. 1134:

38.° "O palácio do Santo Ofício serve de morada ao assessor, ao comissário, ao escrivão, como também de cárcere aos que são acusados, ou suspeitos de alguma das culpas concernentes a este tribunal até à decisão do processo, e estando inocentes os absolvem e soltam: sendo delinqüentes, obstinados ou relapsos, os entregam ao braço secular; porém a maior parte se livram com um cárcere perpétuo, como vimos pouco tempo há, em a pessoa de Miguel de Molinos, autor da nova heresia da oração da quietação."

39.° O mesmo sucedeu a Francisco Boni condenado a cárcere perpétuo por heresiarca; porém vendo-se o Duque de Estrè embaixador de França em Roma em uma grave enfermidade, desconfiando dos médicos, e tendo notícia que Boni era excelentíssimo químico alcançou do Papa Clemente X, que então reinava, no ano do Senhor de 1674, que lhe permitisse o visitá-lo; concedeu-lho com a condição que tivesse a seu lado, sem jamais apartar-se, um frade dominico, e que ninguém lhe falasse senão na sua presença: infinito número de gente acudia ao palácio de Farnese, residência do embaixador, uns a pedir remédios para os seus achaques, outros só pelo ver e ouvir: esteve algumas semanas com o embaixador até o deixar com saúde perfeita, pelo que não só alcançou imortal fama e reputação, mas também por intercessão do embaixador agradecido, conseguiu que o cárcere perpétuo se entendesse por dois aposentos grandes e bem adornados no castelo de S. Ângelo, aonde se entretinha e divertia com as curiosidades da química.

40.° A eqüidade e indulgência da suprema inquisição de Roma logram todas as qualidades de pessoas e religiões, como se vê e o vêem os moradores desta cidade em muitas ocasiões; e como saí de Espanha para aqui, de vinte anos de idade, por certas pretensões, quis por curiosidade observar com particular cuidado os estilos desta inquisição, para depois os cotejar com os de Espanha: para conseguir pois o meu intento tratei amizade com alguns dos principais judeus, informando-me deles como os tratava a inquisição, e me seguraram com solene juramento, que era tanta a confiança que tinha a sua nação em esse tribunal, que achando-se vexada em qualquer magistrado apelava dele para a inquisição, donde infalivelmente se lhe fazia reta e pronta justiça, sem cavilação nem dilação, o que confirmavam com muitos exemplos. Um só alegarei, que vi no ano de 1676 estando a cadeira vaga de Clemente X.

41.° Veio a Roma uma moça judia, de nação alemã, a qual, depois de se haver prostituído a alguns moços de sua nação, se tornou cristã: passado algum tempo acusou à inquisição a um moço principal dos seus, afirmando que encontrando-a na rua que chamam Longera a havia exortado que tornasse ao judaísmo, oferecendo-lhe dinheiro para ir à terra onde não tivesse que recear os rigores da inquisição.

42° Este moço, além de ser dos principais da nação, como tenho dito, estimado de todos os que tratavam com ele, por ser dotado de um caráter dócil e afável com todos, leal em seu negócio, pontual em sua palavra, e finalmente prudente e discreto, era universalmente amado de todos: prenderam-no pela inquisição, e poucos dias depois elegeram por papa ao cardeal Odescalchi, que foi Inocêncio XI. Como este sendo cardeal se havia mostrado muito desafeiçoado aos judeus, receavam que oferecendo-se-lhe ocasião tão plausível e oportuna, não deixaria de satisfazer os impulsos da sua aversão em a pessoa do preso, condenando-o a um rigoroso castigo; porém ficaram desenganados dali a poucos dias quando o viram aparecer livre, alegre, e agradecido aos inquisidores, e a seus subalternos ministros, que, conhecendo o falso da acusação, o trataram com muita benignidade e carinho em tudo, e em todo o tempo que teve de prisão, que foi de 55 dias, sem lhe levarem mais gastos que 55 júlios de moeda romana, que são cinco escudos e meio da mesma moeda, havendo-lhe primeiro advertido que se era pobre não o obrigavam a pagá-los. Como este moço era um dos meus amigos, quis ouvir dele o caso pela sua mesma boca, e ele mo relatou como o tenho referido, não cessando de louvar ao tribunal da inquisição de Roma: se o de Espanha e Portugal imitaram a retidão e eqüidade da suprema, e seguiram os vestígios da sua indulgência, mereceriam os mesmos elogios, e alcançariam os mesmos encômios.

43.° Conhecendo os ministros de Inocêncio XI a grande aversão que tinha à nação hebréia, aconselharam as suas cabeças que lhe não fossem render obediência, como tinham feito aos pontífices seus antepassados para se não exporem a alguma mortal afronta: seguiram o conselho, e não foram a seus pés, sem que o papa formasse queixa da sua omissão, por onde claramente se coligiu a desafeição que tinha à nação.

44.° Sem embargo deste papa tão contrário, e tão desafeiçoado, ocorrendo-lhe tão boa oportunidade de executar os impulsos da sua implacável adversão em a pessoa do moço preso pela neófita alemã, e contra a nação, por não haver rendido a costumada e devida submissão, não só lhe não fez dano, nem injustiça em todo o intervalo do seu pontificado, que durou treze anos, antes em uma sedição popular que houve contra ela mandou aos soldados da sua guarda que defendessem aos judeus, impondo-lhes gravíssimas penas, que não recebessem deles, debaixo de qualquer título ou pretexto, dinheiro, ou refrescos, como serem então os caniculares, que são em Roma quase insuportáveis. Isto é justiça, isto é clemência, isto é caridade.

45.° Os inquisidores subalternos enviados pela suprema de Roma a algumas cidades de Itália procedem com muita circunspecção e cautela com os réus, ainda que com mais rigor e dilação, de que têm sólida e legítima desculpa, no rigor, por se não mostrarem remissos, ou porque os não suspeitem de ambiciosos, pela dilação, porque é força que consultem o oráculo de Roma, não lhe sendo permitido terminar coisa de conseqüência, sem seu preciso mandato, o que devem inviolavelmente executar; e como nem sempre se pode alcançar com prontidão por constar a congregação do santo ofício (que é a suprema) de doze cardeais, alguns prelados, e muitos teólogos, sucede, que ocupados em coisas mais urgentes e graves, por universais, não têm lugar de se aplicar às menores ou particulares, por onde é inevitável a dilatação.

46.° Estes inquisidores subalternos são alguma coisa mais rigorosos que a suprema, por não parecerem curtos em seu ministério, e se não exporem a castigo. Estas notícias devo à minha curiosidade, que me estimulou a observar o estilo da inquisição de Roma e das mais cidades de Itália, para cotejá-las com as de Espanha e Portugal; e como minhas rendas que me enviavam de Espanha passavam por mãos de judeus, me era forçoso comunicá-los, o que me facilitou muito poder penetrar o intrínseco deste misterioso tribunal, conseguindo o que com muito desejo intentava.

47.° Para mais ratificar esta verdade relatarei o que sucedeu em uma cidade de Itália onde me achava. Prenderam pela inquisição a um judeu velho de 70 anos, e este tinha uma perna monstruosamente inchada: havia outro judeu velho, como o preso, e com outra perna da mesma sorte disforme e inchada, sucedeu que os dois velhos se acharam em uma praça postos por linha reta de maneira que um encobria ao outro; mandou o ministro da inquisição a um corchete, que prendesse ao velho da perna inchada: como o primeiro encobria ao segundo, prenderam ao primeiro que ficava mais perto, que estava inocente: examinou-o o inquisidor, negou com audácia e constância; instou-lhe que confessasse, ameaçando-o com rigorosos castigos, porém o preso inflexível permaneceu negando: chamaram-no depois de alguns dias ao segundo exame, reiteraram os ameaços com maior severidade, responde o preso com a mesma audácia, com semblante imperturbável, e com voz arrogante, que era homem de boa vida, e que em os 70 anos que tinha, jamais havia dito nem feito coisa que pudesse causar escândalo a seu próximo: reparou o juiz em a constância da negativa, e em o imperturbável do semblante, e começou a formar melhor conceito do preso; tirou as informações de vitae et moribus, e achou-as todas favoráveis, com o qual satisfeito (descobrindo-se não ser este o acusado) prometeu-lhe a sua liberdade com toda a brevidade possível, o que não pôde cumprir-se, não por falta do inquisidor, que, ainda que rigoroso, era justo; mas porque a sentença dependia de Roma, onde as causas se não podem sentenciar com a brevidade que é necessária pelas razões alegadas no § 45: passaram-se depois perto de cinco meses entre consultas e respostas, no fim das quais saiu livre o preso com muita honra e reputação, e com gosto e satisfação do inquisidor. Se isto sucedera em Espanha e Portugal, os meses se converteriam em anos, e sabe Deus como sairia depois.

48.° Paulo IV foi o mais severo dos papas, que ocuparam o trono Vaticano, segundo publicam as histórias; terrível para os cristãos, inexorável para os judeus: no seu pontificado, que começou em maio de 1555, e terminou em agosto de 1559, sucedeu que uma caterva de mulheres comuns cristãs, andava correndo pela cidade de Roma fingindo-se endemoninhadas, e cometendo mil desordens pelas ruas: perguntados os supostos demônios, por que se tinham introduzido naqueles corpos, respondiam que eram judias neófitas, e que os judeus sentidos de terem deixado a sua religião, os tinham obrigado a se introduzirem nos seus corpos, para as maltratarem. O papa, que era acérrimo inimigo da nação, determinava desterrar os judeus do estado eclesiástico, e prontamente o executara, se um jesuíta não houvesse sustentado constantemente, não haver homem que tenha poder ou faculdade de obrigar ao demônio a que se introduza em um corpo humano.

49.° Apoiado o jesuíta de homens discretos, e de bem, que julgavam ser tudo estratagema forjado por humana malícia para algum fim incógnito, alcançaram secretamente comissão do papa, onde mandava que fossem essas mulheres rigorosamente examinadas, e não confessando se lhes desse tormento ou acoites para assim dizerem a verdade; apenas tinham dado meia dúzia a cada uma delas, quando todas uniformemente depuseram, que doze mulheres de vida escandalosa as tinham exortado a fingir-se endemoninhadas, e a dizer que eram judias convertidas à fé, como tenho dito no § 48: que a origem donde emanava isto era de alguns cortesãos, que vivendo com mais tentação e pompa, do que permitiam seus meios, esperavam que o papa com o excessivo ódio que tinha aos judeus, e estimulado por alguns que tinham fácil acesso à sua pessoa, concederia a confiscação de seus bens a quem lha pedisse, e com a ocasião destes crimes os mandaria matar ou desterrar.

50.° Representada esta proposta em o conselho secreto do papa, mandou prender aos cortesãos de noite mui secretamente, que logo foram presos, e que se lhes fabricasse o processo, e que logo em a mesma noite os enforcassem: ao outro dia foi o aguazil-mor, que chamam barigelo, dar conta ao papa do que tinha feito; e ficou tão satisfeito, que lhe mandou dar duzentos cruzados, dizendo: - se não fora o meu bom jesuíta, eu estava condenado por mandar matar tantos judeus sem razão; rogo a Deus que os converta, porém em todo o resto dos meus dias não os aborrecerei; como com efeito fez até agora. Torno a ratificar o que disse de Inocêncio XI em o fim do § 44: isto é justiça, isto é clemência, isto é caridade.

51.° Dois textos do Deuteronômio, tenho alegado, um no § 16, que manda que se apedreje ao particular que houver apostatado; outro no § 19, onde se manda que, apostatando uma cidade inteira, se matem os moradores à espada, e que se queime a cidade com tudo o que houver nela, em forma que não fique alma vivente racional, ou irracional, nem rasto de fazenda, nem pedra de edifício, nem se permita reedificar-se mais. Em nenhum destes dois textos se faz menção de fisco; e se em cidade que é apóstata manda se queime tudo, é porque devendo morrer todos os moradores, era supérflua a fazenda com tudo o que serve para comodidade da vida, e isto não é confiscação, é destruição. Em o segundo texto, que é o § 19, que trata da apostasia de um particular, manda que se apedreje o apóstata somente, e não que lhe confisquem os bens; e como Deus é todo justiça, e todo misericórdia, não permite já que os filhos padeçam pelos delitos de seus pais, não sendo cúmplices do mesmo delito.

52.° Se as inquisições pois de Espanha e Portugal permitiram que os bens fossem aos legítimos herdeiros do réu, e procedessem contra ele só com todo o rigor das leis, ainda que fosse com as falsidades que hoje se usam, que são, não nomear as testemunhas ao réu, não as confrontar com ele, não as castigar rigorosamente, provando-se-lhes a falsidade, podia-se persuadir o mundo, que o rigor que se via, procederia de um fervoroso zelo de religião, sem outro fim que de expurgar esses reinos de tudo o que não é apostólico romano; porém como sempre adjudicam ao fisco, e ao seu tribunal, presume-se universalmente, que as pias admoestações ficam atropeladas dos estímulos violentos da cobiça.

53.° Os reis e príncipes ainda que sejam despóticos senhores das vidas e bens de seus vassalos vivem, sem embargo disso, sujeitos ao inflexível tribunal da razão e eqüidade, cujos termos jamais devem exceder em a justiça comutativa com a proporção aritmética; em a distributiva com a geométrica. Toda a lei, pois, que não se funda sobre estes dois sólidos fundamentos e pilares da sociedade civil, é tirana, e constitui tiranos aos que a praticam. Para evitar pois esta pedra de escândalo, determinado o Imperador Justiniano a reformar as leis que andavam espalhadas em um imenso número de livros, confusos e contrários, e muito pouco inteligíveis, mandou fazer um congresso dos mais acreditados jurisconsultos do mundo, declarando por presidente dele a Carbontano, como mais versado e mais eminente em semelhantes matérias. Formaram-se pois por sua ordem as instituições, pandetas, códices, e outras obras, com a indústria e ciência destes grandes homens para que reconhecessem os vassalos, que não determinava governá-los se não com justiça, ao menos com razão e eqüidade. Assim o fez Justiniano, assim o fazem os reis e príncipes em toda a Europa.

54.° Tem a inquisição de Roma suas leis por onde se governa, também as têm as de Espanha e Portugal; porém as destes dois reinos são tiranas, porque excedem os limites da razão, justiça e eqüidade. É eqüidade, justiça e razão, tratar aos acusados como réus, antes que conste ao tribunal da sua culpa? É eqüidade, justiça e razão reputar por testemunhas fidedignas a homens vis, infames, corruptíveis, ou a homens de honras que depõem o que não sabem nem crêem, para se livrarem de uma insuportável e cruel vexação para saber a sua vida? É eqüidade, justiça e razão, não confrontar as testemunhas com o denunciado, podendo suceder que conheçam o nome sem conhecer a pessoa, e que vendo-a se retratam do que depuseram? E eqüidade, justiça e razão condenar por depoimento de testemunhas não contestes, e muitas vezes falsas, e sem recear pena nem castigo? E, finalmente, eqüidade, justiça e razão, que um tribunal eclesiástico que blasona zelar a honra de Deus e defender a sua causa, autue a sentença contra o que manda Deus e dita a razão, quando em todos os tribunais seculares da Europa se agitam as causas criminais com toda a circunspecção e recato, não se dando jamais definitiva sentença sem constar evidentemente do corpo do delito? É certo que não.

55.° Crê a Igreja romana ser o papa infalível, por inspirado em matéria de religião: os inquisidores de Espanha e Portugal, como membros tão consideráveis da Igreja devem ter este dogma por incontestável, e por conseqüência devem executar os decretos pontifícios sem dúvida, nem repugnância.

56.° Inocêncio XI em o breve promulgado a favor dos cristãos-novos dos reinos de Portugal e Algarves, que começa - Romanus Pontifex- dado em 22 de agosto de 1681, manda que:

I. Não se confisquem os bens antes de se dar sentença,pelo menos declaratória.

II. Não se empreguem os bens dos denunciados senão nos seus alimentos necessários, e que se faça inventário diante de um parente do acusado, em cuja mão se depositem, dos quais se deve sustentar a família do dito acusado, e pagar-se a seus legítimos credores.

III. Que se entre esses bens se acharem efeitos ou dinheiro que pertençam a outros, constando judicialmente, se lhes entreguem.

IV. Como também depois da sentença achando-se bens enfitêuticos entregues em confiança, ou sujeitos a restituição, seja como for, se entreguem logo a quem pertencerem de direito.

V. Que se não possa prender sem precederem legítimos indícios, conforme as regras de direito.

VI. Que se não detenham os presos no cárcere, debaixo de qualquer pretexto, mais do tempo necessário para terminar o processo, mas que se despachem o mais depressa que for possível, sem esperar pelo auto-da-fé.

VII. Que o juramento que se exibe aos advogados nomeados pelo Santo Ofício para defesa dos culpados se não insira nele a cláusula (se por conjectura) nem outras semelhantes ou equivalentes.

VIII. Que o advogado nomeado pelo santo ofício possa falar com o preso sem assistência de outra pessoa, e que se lhe entregue a cópia do processo, suprimindo os nomes das testemunhas, e das circunstâncias que as podem dar a conhecer.

IX. Pedindo o preso outro advogado, que não seja nomeado pela inquisição, se lhe dará e concederá, sendo homem de boa fama; e este depois de haver jurado de guardar segredo, se lhe dará também cópia do processo - supressis suprimendis -, porém não se lhe permitirá falar com o preso sem assistência de um deputado da inquisição.

X. Que os cristãos-novos que não tiverem exceções legais, se admitam a depor em defesa dos acusados.

XI. Que no que toca à negativa do - alibi - se proceda segundo a disposição de direito, e das ordenações canônicas.

XII. Que não possam ser tutores ou curadores daqueles a quem de direito se devem nomear, nem o guardião do cárcere, nem outro oficial do Santo Ofício, mas que se eleja para isso qualquer outra pessoa que seja grave, fiel e de boa vida.

XIII. Que totalmente se abstenham de todas as sugestões, concussões, promessas, e coisas semelhantes em os exames que se fizerem das testemunhas e dos acusados.

XIV. Que não se possam deduzir provado judaísmo, por proceder de geração de judeus, particularmente, que não se possam deduzir suficiente presunção para um ato judicial por uma tal descendência.

XV. Que, não havendo lugar de condenar a algum preso, não o obriguem a sair no auto; porém que não sendo réu despachem logo ao dito, e o soltem sem esperar pelo auto.

XVI. Que os cristãos-novos possam testemunhar contra os cristãos-velhos, não tendo exceções legais, e que não os obriguem a jurar, que não atestarão contra cristãos-velhos.

XVII. Que se todavia subsistir o costume de castigar os cristãos-novos, sem outra causa que por deporem contra cristãos-velhos, que se anule.

XVIII. De onde se pode assegurar do delito, como sendo o delito permanente, não se possa constituir réu ao delatado, sem que conste juridicamente ser tal.

XIX. Que não se julgue por diminuto o que não nomear em sua confissão uma testemunha compreendida em as informações, que não tenha deposto mais que como uma simples testemunha, ainda que seja de parente muito próximo.

XX. Que aquele que em sua confissão de apostasia não nomear uma testemunha cúmplice do mesmo delito, que seja parente em 1.° grau, não possa julgar-se diminuto, sem haver uma plena e legítima prova da cumplicidade voluntária e fraudulenta omissão do dito cúmplice, e que não haja indícios que o acusado o não tenha nomeado por esquecimento ou falta de memória.

XXI. Se um réu depois de haver confessado ter guardado algumas cerimônias da lei de Moisés, quando creia nela, não sendo convencido por testemunhas válidas de haver repetido as mesmas cerimônias, que agora nega, não seja condenado a pena ordinária, e mais particularmente sendo as novas cerimônias. de que o acusam, indiferentes e equívocas.

XXII. Em caso de acusação de heresia ou apostasia, ainda que as testemunhas sejam singulares a respeito dos lugares e tempos, sendo conformes em outras circunstâncias, serão admitidos a depor contra os acusados de judaísmo, e no reino de Portugal, segundo o seu antigo costume, e em consideração de outras certas circunstâncias recebidas em favor da fé no dito reino, com que sejam as ditas testemunhas muitas em número, consideráveis por sua qualidade, capazes de dar testemunho fidedigno, e finalmente, que sejam tais, quais sejam, e se requerem por lei e por direito, e particularmente concorrendo em seu favor, outras conjecturas aparentes, havendo primeiro considerado e examinado todas as outras circunstâncias, juntamente com a igualdade da pessoa contra quem se depõe, de sorte que não fique lugar de presumir, que tais testemunhas deponham falsamente.

XXIII. Que os depoimentos destas testemunhas singulares, que constam de coisas impossíveis, não sirvam de prova por nenhuma maneira.

XXIV. Que a reputação das testemunhas seja indispensavelmente necessária depois de se contestar o processo com citação, que quer dizer, que seja com conhecimento do acusado, e por artigos, que sejam presentados pelo procurador do mesmo acusado, ou que supram ex officio, sem o que as ditas testemunhas sejam de nenhum valor.

XXV. Que as testemunhas que depõem de indícios remotos de confissão extrajudicial de judaísmo, não façam prova bastante para condenar o negativo à pena ordinária.

XXVI. A validade dos depoimentos de testemunhas para outras penas ou efeitos, se remete à consciência e prudência do juiz eclesiástico temente a Deus.

XXVII. Que as confissões tiradas por violência contra a forma jurídica, que se fazem por sugestão, ou por promessa de vida ou liberdade, que são gerais e obscuras, e que repugnam à idade, sexo ou capacidade de confitente, não tenham força de sujeitar os confitentes a pena ordinária, salvo se ratificarem legalmente o dito por outra via.

XXVIII. Que os presos sejam tratados com caridade, e que os cárceres não sejam, nem tão duros, nem tão tenebrosos.

XXIX. Que se lhes não neguem, nem confissões, nem livros espirituais.

XXX. Manda enfim, que estas ordenações se observem inviolavelmente sob pena de interdito ab ecclesia ao inquisidor-geral, e de excomunhão latae sententiae, aos subalternos inquisidores, e a seus oficiais e ministros.

57.° Se os inquisidores destes reinos guardam estas ordenações pontifícias ou não as guardam, se pode ver em a relação portuguesa de Vieira, e diferentes relações posteriores ao breve de Inocêncio XI de todas as quais claramente consta que não guardam as leis divinas, nem humanas, nem bulas pontifícias, nem cânones, usando somente certas constituições particulares e imprescrutáveis a todo o gênero humano, não excluindo o mesmo pontífice, a quem negaram a remessa de quatro processos, que mandava lhe enviassem.

58.° Porém é mais acertado narrar aqui quem foi o inventor deste tribunal, e como lançou tão profundas raízes e tão constantes em o reino de Portugal, segundo o refere Manuel de Faria e Sousa em sua Europa Portuguesa, que diz assim:

Mas para que se veja a introdução deste sagrado tribunal em o nosso reino, em memória de um estranho sucesso, justo fora, e justo será, que o não deixemos em esquecimento. Referem os escritores graves, que viveram naqueles tempos, que João Savedra, filho de outro capitão do mesmo nome, e de sua mulher, D. Ana de Gusmão, vizinhos da cidade de Jaém, grande imitador de toda a variedade de letras, começou em a corte de Castela a imitar as firmas reais, e de todos os ministros: destro já nelas, fez muitas cartas falsas com que em várias partes cobrou grande soma de dinheiro; e a primeira foi de doze mil cruzados, por não começar miseravelmente; depois com outra como se fora do Imperador Carlos V presentada no conselho real das ordens, pôs o hábito de S. Tiago com quatro mil cruzados de renda. Vendo que em Portugal se duvidava admitir inquisição, não por falta de zelo, senão por zelos de não desprezar jurisdições, entrou em pensamentos de a introduzir em Portugal, deu uma vista de olhos ao reino para se fazer capaz na terra, e se capacitar da gente com que havia de tratar. Tomando a Andaluzia topou um religioso de certa ordem a que então se dava princípio, o qual detendo-se com ele alguns dias, e aberta a comunicação, lhe mostrou umas bulas de Paulo III com que vinha de Roma, acerca de suas fundações, e disse-lhe que não trazer nomeado o seu nome nas ditas bulas lhe dava grande desgosto; vejam-se os rodeios por onde Deus encaminha as coisas para bem, ainda que por meios improporcionados, como já tinha feito pelo profeta Balaão, sendo mau, para coisas de seu serviço. Logo que viu as bulas o Savedra teve pensamentos de imitá-las para o intuito que trazia; ofereceu ao religioso outras semelhantes, com a vantagem de nomear nelas ao companheiro a troco de ficar com os originais: concertam-se, e despediram-se. Com o desejado original passou Savedra a Taveira no Algarve, aonde abriu os selos pontificais, e fazendo umas bulas bem imitadas, se foi a Aiamonte por saber que ali tinha chegado de Roma um provincial franciscano: entrou a falar-lhe, e disse-lhe: por saber que vossa paternidade é prático das coisas de Roma, e ter achado ontem em um caminho onde iam correndo a posta seis homens de bom hábito, estes pergaminhos, lhos quis mostrar, para que me declare o que contêm; porque se acaso forem importantes, não se percam, e vá atrás daquela gente porque serão seus. Vendo o frade aquelas bulas, e aquela que lhe pareceu ignorância de Savedra, disse-lhe que os pergaminhos eram nada menos que bulas pontifícias sobre a fundação do santo ofício em Portugal, e que era crível ser núncio do pontífice algum dos que corriam a posta; encarrego-lhe muito a consciência sobre ir após dele, porque tal perda não fosse causa de malograr um bem tão grande: com isto se assegurou de que as suas bulas estavam firmemente imitadas, pois um homem prático em as coisas romanas, as havia reconhecido verdadeiras: passou-se a Sevilha com a grande cópia de dinheiros colhidos aqueles dias em virtude da sua habilidade, e colhendo ali outras, dispôs a sua casa com a autoridade que pudera um luzido cardeal e núncio, assim em adornos, como em criados e ministros, que excediam o número de cento e vinte, e com hábito cardinalício, e com essa pompa marchou a Badajoz, executando em os distritos da inquisição de Lorena muito sobre o que a ele tocava: desde Badajoz despachou um secretário a el-rei dando-lhe aviso da sua chegada, e do motivo dela: primeiro se duvidou e depois ordenou ao Duque de Aveiro que saísse a recebê-lo: entrado na corte se portou de maneira que plantou em Lisboa e em Coimbra aquele tribunal de que fez primeiros ministros aos Drs. Pedro Alves Bezerra, D. Afonso Vasques, Luís de Cárdenas, que trouxe de Lorena, e outros escolhidos neste reino dos mais doutos e retos: permaneceu nisto três meses discorrendo pelo reino e exercitando retissimamente a justiça contra os culpados no crime de judaísmo. Tal estado tinham as coisas, com que se achava a religião favorecida, e ele respeitado e poderoso, quando, entendida e suspeitada a astúcia, se cometeu sua prisão ao Marquês de Barcarota que a fez em Moura por meio de um cura daquela vila de quem se havia confiado. Levaram-no a Madri onde foi entregue ao cardeal D. João Taveira inquisidor-geral, que então tinha o governo de Castela: remeteu o processo ao pontífice que admirado de que obrasse tanto em obséquio da religião por um tal meio, e que era permissão divina, ordenou que lhe dessem alguma piedosa penitência, acrescentando que se quisesse passar a Roma, folgaria de o ver. Que morresse era o que se pretendia em conselho real, cuja autoridade se via ofendida singularmente da falsificação de tantas firmas reais e de seus ministros; porém favorecido do cardeal, desejoso de dar gosto ao papa, lhe veio breve para poder eleger juízes, e elegeu ao Dr. Arábia inquisidor de Lorena; condenaram-no a dez anos de galés, e a que jamais pegue em pena, com pena de lhe ser a mão cortada. Depois apeteceu Carlos V vê-lo, e visto e escutado lhe fez mercê de dois mil cruzados de renda, parecendo-lhe (e bem pelo fruto que resultou à Igreja da sua ousadia) mais justo premiar a um ânimo tão ousado, que punir uma ousadia tão criminosa. Quis Carlos V antecipar-se ao pontífice nisto por certo ser que o desejo que tinha de o ver, era para lhe fazer alguma mercê.

59.° O tribunal da inquisição pois o introduziu em Portugal este Savedra forjando bulas, e furtando firmas, reinando El-Rei D. João, o 3.°, ano de 1577, e ainda que convencido o inventor fosse condenado a galés por toda a vida, nem por isso deixou de se estabelecer o tribunal com o título de santo ofício.

60.° Exercitavam os inquisidores seu emprego com inflexível severidade contra os cristãos-novos condenando com suficientes provas, e condenando com atrozes penas. Escandalizados alguns homens pios e caritativos, recorreram com os ministros a el-rei representando-lhe um grande dano que resultava a seus reinos de execuções tão cruéis, como freqüentes, procedidas de uma nova e jurisprudência.

61.° Persuadido el-rei de tão irrefragáveis razões, e compadecido da terrível vexação de seus vassalos, implorou do papa e alcançou um breve em o qual concedendo geral perdão a todos os acusados de judaísmo, mandava aos inquisidores que os soltassem logo, sem réplica nem dilação: obedeceram ipso facto, sem mendigar pretextos, nem alegar subterfúgios, porém depois de alguns dias tornaram a povoar os cárceres dos miseráveis cristãos-novos oprimidos com o costumado rigor.

62.° Continuou este rigor inviolavelmente em vida de El-Rei D. Sebastião neto e sucessor de D. João 3.°, em o limitado reinado do cardeal rei, que regeu o cetro depois dele, e no de Filipe 2.° que conquistou Portugal, de seu filho Filipe 3.°, e do tempo que possuiu Filipe 4.°

63.° Havendo os portugueses recuperado o seu reino proclamando ao Duque de Bragança com o nome de D. João 4.°, houvera sem dúvida abolido a inquisição se não fora o breve da sua vida e o dilatado da guerra, sem embargo do que penetrando este discretíssimo príncipe, que o inviolável segredo que se guardava nesse tribunal, servia de pretexto para cometer enormes abusos que o rumo dos inquisidores não atirava a outro fim que à ostentação, vanglória e cobiça, sem nenhum respeito à justiça, nem à piedade, que o que entrava em seu real tesouro das confiscações da inquisição era muito curto e inconsiderável, distribuindo-se a maior parte com os ministros da mesma inquisição, resolveu emendar em parte o que lhe permitia o calamitoso do tempo, reservando-se cumprir o demais para melhor oportunidade: em ordem a isto, pois, mandou, que para futuro não se confiscassem os bens dos réus do santo ofício.

64.° Consternados os inquisidores de um golpe tão dolorífico; por considerar-se frustrados dos pingues emolumentos das confiscações, recorreram ao papa sem participação do rei, com muitas súplicas e instâncias, cujo efeito produziu um breve que mandava, que tudo se tornasse ao estado em que se achava antes do real decreto, com pena de excomunhão a quem obstasse à execução do breve.

65.° Apoiados de tão formidável proteção, presentaram-se ao rei em forma de tribunal, suplicando-lhe se servisse permitir que se lesse a Sua Majestade em presença de toda a corte, um breve pontifício.

66.° Concedeu-lho el-rei, leu-se, e ouviu com notável atenção, e perguntando a quem se deviam adjudicar as confissões, respondeu, ou responderam, que à Sua Majestade. Sendo pois minhas, replicou el-rei, posso dispor do meu, como melhor me parecer; para não contravir pois ao breve do papa, e para mostrar o muito respeito que lhe professo, consinto que confisqueis os bens dos réus, com condição que se faça deles um muito exato inventário, porém declaro que faço doação destes bens desde logo aos mesmos réus, e a suas famílias, e que se lhes tornem fielmente, ainda que sejam condenados às mais rigorosas penas de corda e fogo.

67.° Ficaram os inquisidores totalmente frustrados de suas altas esperanças, por este real decreto tão prejudicial a seus interesses, porém foram necessitados a religiosamente guardá-lo por toda a vida deste príncipe e digníssimo rei.

68.° Morto D. João IV, representaram os inquisidores à rainha viúva, que havendo el-rei seu marido contravindo as ordens do papa, havia ipso facto incorrido em excomunhão fulminada em o breve por haver impedido sua execução, pelo qual amedrontada, consentiu que os inquisidores vestidos de hábitos sacerdotais absolvessem ao cadáver do rei da referida excomunhão, diante dos príncipes D. Afonso, e D. Pedro seus filhos.

69.° É fácil pois de conhecer que a cerimônia de absolver ao rei defunto, não foi mais que um estratagema dos inquisidores, para amedrontar os grandes do reino e ao povo, e para conservar a autoridade do santo ofício em o seu ponto, sendo patente que o rei defunto havia cumprido em tudo com o dito breve, ainda que remetia aos réus os bens confiscados, como temos dito, por onde uma magnificência tão generosa, verdadeiramente digna duma piedosa majestade, não merecia uma pena tão ignominiosa, como a que se lhe impôs, antes pelo contrário havia de obrigar aos favorecidos e protegidos vassalos, a dar-lhe imortais graças, fazendo o procedimento que com ele se houve, odioso a todo o mundo.

70.° Animada a inquisição pela impunidade de tão horrível atentado contra a honra de tão pio e justo rei, prosseguiu os seus rigores, ou sejam inumanidades em o reinado de D. Afonso, e parte do de D. Pedro, em cuja regência, que foi o ano de 1672, roubaram em uma igreja de Lisboa a um rico cofre e ricos cálices, com outras peças de oiro e prata.

71.° Abriu-se pela manhã cedo a igreja, e vista a falta por se acharem as hóstias espalhadas pelo altar, e pelo chão, não houve cristão-velho que não julgasse inevitavelmente que não fosse autor de semelhante sacrilégio, algum cristão-novo.

72.° Os senhores que chamam da relação, que é o supremo Senado de Lisboa, mandaram fazer uma visita exata em casa de todas as pessoas suspeitosas, e fez-se com tanta severidade, que queriam saber precisamente de quem não tinha dormido em sua casa a noite antecedente, donde tinha estado, e porque não estivera em sua casa, em companhia de quem tinham passado a noite; levaram por mínimo indícios aos cárceres um infinito número de pessoas de todo sexo e idade, examinando-as com toda a possível exação, sem que se pudesse por aquela via descobrir o autor ou autores de tão enorme atrocidade.

73.° Levava a inquisição muito a mal, que os juízes seculares autuassem ou avocassem a si o conhecimento deste delito: porém foi muito bom, e para bem dos cristãos-novos, com os quais tivera a inquisição usado sua costumada e cruel perseguição.

74.° Serviram-se deste pretexto os inimigos dos cristãos-novos, para incitar contra eles o furor do povo, que quotidianamente os aborrece e persegue; passou tanto adiante a desordem, que nenhum desses miseráveis se atreveu a sair à rua além do que se determinou em o real conselho, que convinha desterrá-los do reino.

75.° Os inquisidores que são ex officio perseguidores dos cristãos-novos, em esta ocasião se esqueceram do seu ódio e falso zelo, de sorte que não só não votaram pela expulsão, antes se opuseram a ela com grande eficácia, alegando que não se devia permitir, que gente vacilante na fé passasse a terras donde se professa liberdade de consciência; não deixavam os discretos de penetrar o fim dos inquisidores, que era conservar a sua autoridade e satisfazer sua insaciável cobiça, porém conseguiram enfim o que pretendiam, de sorte que não se falou mais na expulsão, e continuaram a prender quotidianamente um grande número deles, examinando-os com notável rigor.

76.° Neste intervalo de tempo sucedeu prender-se um cristão-velho pelo acharem roubando em um lugar perto de Lisboa, a cujos cárceres foi levado, e buscando-lhe as algibeiras se achou a cruz do cofre sagrado, que se tinha roubado alguns meses antes; perguntado sobre esse artigo, confessou que ele só havia quebrado o vaso, e dele era aquela cruz que se lhe achava.

77.° Descoberto e castigado o autor do sacrilégio, se mandaram logo soltar todos os cristãos-novos, que estavam presos por essa causa. Parecia que desenganado o povo do irremediável ódio que tinha a esta miserável nação, o tinha deposto, ou se lhe tinha diminuído; porém note-se, que aqueles mesmos inquisidores, que com tanto contato se tinham oposto à sua expulsão, vendo que não havia que recear, que os desterrassem do reino, tornaram a seus antigos procedimentos, perseguindo-os com maior rigor que jamais se havia usado. Aqueles mesmos a quem os senhores da relação haviam reconhecido por inocentes, foram os primeiros expostos aos furores do Santo Ofício tendo os miseráveis escapado da primeira tormenta, para caírem em outra incomparavelmente mais terrível, e mais perigosa.

78.° Estas enormes crueldades obrigaram a alguns senhores dos mais qualificados por sangue, a recorrer ao infante D. Pedro.

79.° Os principais foram estes: o Marquês de Marialva, D. Antônio de Mendonça arcebispo de Lisboa, D. Cristóvão de Almeida, bispo de Martíria, o bispo de Portalegre, o Marquês de Távora, o Marquês de Fontes, o Conde de Vila Flor D. Sancho Manuel, e outros célebres doutores, e religiosos de diferentes ordens: todos estes senhores representaram a D. Pedro o gravíssimo e irremediável dano que padeciam seus vassalos, pelos estranhos modos de proceder da inquisição, de donde forçosamente se seguiria a total ruína de seus estados. Persuadido o príncipe destas irrefragáveis razões, mandou a seu embaixador, que estava em Roma, que solicitasse um breve do papa, no qual permitisse aos cristãos-novos representar ao mesmo papa as razões que pretendiam ter para queixar-se do procedimento do santo ofício: conseguido e promulgado o breve em Portugal suspenderam-se logo as execuções da inquisição, e se permitiu aos cristãos-novos nomear procuradores, que fossem agentes tanto em Roma como em Portugal, e que procurassem uma ordem do papa, que mandasse reduzir as formalidades do santo ofício às regras instituídas pelo direito civil e canônico.

80.° Presentearam estes agentes ao papa uma memória onde lhe suplicavam mandasse aos inquisidores, que remetessem a Roma alguns processos velhos de pessoas condenadas ao fogo pela inquisição, e particularmente daqueles que tinham morrido declarados por convencidos negativos, a fim de que considerados esses documentos, ficasse persuadido da justiça dos suplicantes para queixar-se, e ao mesmo tempo pusesse algum remédio às suas insofríveis vexações.

81.° Conhecendo os ministros da inquisição, que se obedeciam ao breve pontifício ficavam expostos a totalmente perder, ou a notavelmente diminuir a autoridade, determinaram prevaricá-lo em tudo; por cuja causa irritado o papa, mandou suspender por um novo breve pontifício ao inquisidor-geral, e a excomungar todos os seus subalternos, mandando-lhes além disso, que entregassem as chaves das inquisições aos juízes ordinários, o que também absolutamente negaram, e dos quatro processos que pedia o papa, e de muitas dilações da parte da inquisição, lhe remeteram dois dos menos prejudiciais que puderam achar. Depois desta pequena satisfação ficaram absolutos da excomunhão; e ainda que o mesmo papa mandou depois algumas regras por onde se deviam governar para moderar o rigor deste tribunal, tudo foi inútil, ficando as coisas na mesma forma que o estavam antes da suspensão.

82.° Os meios que tomaram os inquisidores para evitar este terrível golpe foi representar a el-rei que a corte de Roma não fazia reiteradas instâncias por estes processos para outro fim mais, que para inserir-se com os negócios de Portugal, que, depois de haver agregado a si esta dependência da inquisição, passaria a intrometer-se em os negócios eclesiásticos, e deles aos seculares; que Roma tirava a eclipsar o sol da sua soberania, e a diminuir os direitos da sua coroa, e que isto podia ser de grande conseqüência, oferecendo pretextos ao papa para se intrometer nos direitos do reino e do rei, o qual não deve conhecer outra superioridade, senão somente a Deus.

83.° Ainda que no princípio havia sido D. Pedro muito a favor dos cristãos-novos, destituído agora dos conselhos dos seus fiéis ministros, que lhe haviam imperado sentimentos de lástima pelos vassalos oprimidos pela inquisição, deixou-se facilmente alucinar das aparentes razões dos inquisidores, de sorte que em lugar de continuar a proteção aos cristãos-novos, mandou ao oposto embaixador em Roma, que empregasse todos os meios possíveis para dissuadir o papa da pretensão dos processos da inquisição.

84.° Havendo penetrado os inquisidores, que o primeiro embaixador despachado a Roma para exortar o papa a favorecer os cristãos-novos, fazia o que lhe havia encomendado o rei com toda a aplicação e cuidado, determinaram granjeá-lo, se fosse possível, ou em falta, solicitar para fazer-lhe nomear sucessor. Intentaram a primeira via, porém achando-a infrutuosa obrigaram ao príncipe a removê-lo com sugestões aparentes e plausíveis, e a nomear em seu lugar a D. Luís de Sousa, que foi depois arcebispo de Braga, logo que D. Veríssimo de Alencastro deixou o arcebispado para ocupar o posto de inquisidor-geral.

85.° Este novo embaixador, íntimo parcial da inquisição, mostrando servir a el-rei e à sua pátria, não fez nem uma coisa nem outra, porque se opunha secretamente à boa intenção do papa, que era emendar os abusos do Santo Ofício, suprimia e atenuava as razões que os cristãos-novos alegavam a seu favor, informava aos inquisidores do que se fazia em Roma, dando-lhes por esta via meios de frustrar as ordens do papa; e por fim representava ao pontífice, que todos os bons portugueses ficavam escandalizados de ver que havia quem se atrevesse a duvidar da retidão do santo ofício, e que insistindo a pedir os processos, era tacitamente introduzir o judaísmo em Portugal.

86.° Que se acaso se amotinasse o povo, como se pode recear, seria forçoso a el-rei usar de um remédio pouco agradável à corte de Roma, podendo suceder que fosse necessitado a nomear um patriarca em Portugal, e com muita razão; porque a grande dificuldade que tinham os papas, havia muitos anos, de conceder as bulas aos bispos nomeados por Sua Majestade, havia disposto os ânimos dos povos à estranha novidade.

87.° Com estes e outros subterfúgios e estratagemas ficaram as boas disposições do pontífice totalmente frustradas, por onde, dos quatro processos que pedia, não alcançou mais que dois, e esses escolhidos e alterados, mutilados ou acrescentados à vontade e conveniência dos inquisidores, segundo as suas costumadas extorsões contra os cristãos-novos.

88.° Por esta sucinta relação, patentemente se conhece que os inquisidores ainda que afirmem ser o papa cabeça visível da Igreja, que falando ex cathedra de fide ou ex moribus, é infalível; porque é inspirado, que o que nega este artigo é herege, sem embargo disso atropelando estas e outras considerações, não atendem a bula, nem o breve, permanecendo firmes em seu antigo modo de proceder.

89.° João de Val Belga in compend. Bonacin tit. lex § 13 diz que para se fazer uma lei se requer seis condições; as primeiras três, que fazem ao nosso intento são: 1.ª que se faça por superior legítimo; 2.ª que seja dirigida ao bem comum e universal; 3.ª que seja justa. Que as leis pois das inquisições sejam feitas por legítimo superior, ninguém o duvida; que sejam dirigidas ao bem universal, todos convêm; que sejam justas, não há quem a isso se não persuada; toda a dúvida e toda a queixa se estriba em a execução destas leis, a saber, se se executam legalmente segundo a intenção do legislador é que se castiguem os delinqüentes, e não os inocentes, que se castiguem apóstatas do cristianismo, e não cristãos que morrem confessando a fé católica; que as testemunhas que depõem contra um constituindo-o delinqüente, sejam, sem exceção, homens pios e devotos, de vida irrepreensível, de exemplares costumes, e fora de toda a suspeita de ódio, inveja e corrupção. Pode suceder, também, que as testemunhas possuam todas estas prerrogativas em sumo grau, e que acusem a um inocente, não com propósito de fazer mal a seu próximo, mas com propósito de eximir-se das garras de tão cruel e inumano tribunal, que pela mínima sombra de uma palavra, e equívoca, ou de uma ação anfibológica expõe numerosas famílias à corda, e às chamas sem eqüidade, sem caridade e sem misericórdia.

90.° Com razão e justiça pois diz o Vieira no § 53 detestando as extorsões que pratica a inquisição depois do terceiro regimento, o qual regimento pode examinar e ver como é encontrado, e nada conforme ao direito comum, antes exorbitante e muito diferente do regimento que supõe o estilo da inquisição universal de Roma.

91.° Como pode julgar-se de um tribunal, que administre incorruptibilidade e reta justiça, onde se mata a um por apóstata, e a outro por ortodoxo? O cristão e o judeu crêem, cada um deles, respectivamente, que a sua religião o salva, e que fora dela não há redenção para a sua alma; crêem, também, que depois de mortos aparecem imediatamente diante de Deus a dar estreita conta das suas ações para à vista delas ser condenados ao Inferno, ou colocados na glória; é pois crível que o que chamam negativo, que condenam a garrote primeiro, e depois a queimar, crendo que vão dar conta a Deus dentro de poucos instantes, se declararão, e protestarão que professam uma lei, que intrinsecamente não crêem, sem que receiem ser condenados ao Inferno? Não por certo, pois a razão o não admite, e a experiência o repugna. Sendo pois assim, como sem dúvida é, segue-se que todos os negativos morrem cristãos, porque são cristãos, e todos os queimados vivos, seja público, que morrem judeus, porque são judeus, e uns e outros morrem: ergo em as inquisições se mata indiferentemente o cristão e o judeu, contra a intenção do instituidor ou legislador que é somente, que se mate o cristão, que apostatou para o judaísmo, confessando no suplicio que é judeu, mas o que estando com a morte na garganta, diz e afirma com altas vozes, que sempre foi cristão, e que sempre o será.




Um comentário:

  1. ---
    Comentário Único - demais descrições, na pág. devida - Clavis Prophetarum
    ---

    Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.

    ---

    ResponderExcluir