domingo, 15 de setembro de 2013

Profecia - Livro 2

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II
Esperanças de Portugal, QUINTO IMPÉRIO DO MUNDO, primeira e segunda vida de El-Rei D. João o quarto. Escritas por GONSALIANES BANDARRA, e comentadas pelo Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, e remetidas pelo dito ao Bispo do Japão, o Padre André Fernandes


Ao Sr. Bispo do Japão.


Conta-me vossa senhoria prodígios do mundo, e esperanças de felicidades a Portugal, e diz vossa senhoria que todas se referem à vinda D'el-Rei D. Sebastião, em cuja dúvida e vida tenho já dito a vossa senhoria o que sinto. Por fim me ordena vossa senhoria, que lhe mande alguma maior clareza do que tantas vezes tenho repetido a vossa senhoria da futura ressurreição do nosso bom amo El-Rei D. João, o 4.° A matéria é muito larga, mas para se escrever tão de caminho como eu o faço, em uma canoa em que vou navegando no rio das Amazonas, para mandar este papel em outra que possa alcançar o navio que está no Maranhão de partida para Lisboa, e resumindo tudo a um silogismo fundamental, digo assim:

O Bandarra é verdadeiro profeta, o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o 4.° há de obrar muitas coisas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando. Ergo etc.

Prova-se a conseqüência deste silogismo com um discurso claro e evidente, de que se Bandarra é verdadeiro profeta, como se supõe, se hão de cumprir suas profecias, e que há de obrar El-Rei D. João as coisas que Bandarra dele tem profetizado: e como estando morto as não pode obrar, segue-se infalivelmente há de ressuscitar. Esta ilação não só é de discursos, senão ainda de fé, porque assim o inferiu Abraão, e assim o confirmou S. Paulo, declarando o discurso que Abraão fizera quando Deus lhe mandou sacrificar e matar a Isaque, em que ele lhe tinha prometido a sucessão de sua casa, e outras felicidades ainda não cumpridas.

O discurso de Abraão foi: Deus prometeu que Isaque há de ser o fundamento de minha casa e descendência; Deus manda-me matar ao mesmo Isaque; segue-se logo que se Deus não revogar seu mandado, e se Isaque morrer, que Deus o há de ressuscitar. Esta foi a conseqüência de Abraão. Esta é a minha D'el-Rei D. João o 4.°, morto, como já disse, quando sua majestade esteve no grande perigo de Salvaterra, que tantas vezes e tão constantemente repeti, e depois preguei, que, ou el-rei não havia de morrer, ou se morresse havia de ressuscitar: assim o disse na sua vida, assim o preguei nas suas exéquias, assim o creio e espero: assim o devem crer e esperar por infalível conseqüência, os que tiverem o Bandarra por verdadeiro profeta, como melhor se mostrará.

Prova-se a primeira proposição do silogismo maior: o Bandarra é verdadeiro profeta; a verdadeira prova de espírito profético é o sucesso das coisas profetizadas. Assim o prova a Igreja nas canonizações dos santos, e os mesmos profetas canônicos, que são parte da escritura sagrada: e fora dos princípios da fé não têm outra prova na verdade de suas revelações ou profecias, senão a demonstração de sucedido, o que tantos anos antes profetizaram.

O mesmo Deus deu esta regra para serem conhecidos os verdadeiros e falsos profetas.

Promete Deus ao povo hebreu que lhe daria profetas de sua nação, e porque no mesmo povo se costumava levantar profetas falsos, e podia haver dificuldade em se conhecerem quais eram os verdadeiros, e mandados por Deus, o mesmo Deus deu por regra certa para se conhecerem uns e outros, e suceder ou não suceder o que tinham profetizado - e se não suceder o que o profeta disser, tendo-o por falso, e se suceder, tendo-o por verdadeiro, e mandado por mim. Não se pode logo negar que o Bandarra foi verdadeiro profeta, pois profetizou e escreveu tantos anos antes tantas coisas, tão exatas, tão miúdas, e tão particulares, que vemos todas cumpridas com os nossos olhos, dos quais apontarei brevemente as que bastam para ao intento, sucedidas todas na mesma forma, e com a mesma ordem como foram escritas.

Primeiramente profetizou o Bandarra, que antes do ano de quarenta se havia de levantar em Portugal uma a que ele chama grã tormenta, que foi o levantamento de Évora, e que os intentos desta tormenta haviam de ser outros diferentes do que mostravam (porque verdadeiramente eram para levantar todo o reino), e que a tormenta havia de ser logo amansada, e que tudo se havia de calar, e que os levantados não teriam quem os seguisse e animasse, como verdadeiramente sucedeu. Isto querem dizer aqueles versos do sonho primeiro:

Antes que cerrem quarenta
Erguer-se-á grã tormenta
do que intenta,
E logo será amansada
E tomarão a estrada
De calada,
Não terão quem os afoite.

Advirta-se que estes versos se hão de ler entre parênteses, porque não fazem sentido com os que imediatamente se seguem, os quais se atam com os de cima, e não continuando a história com os que depois deles se seguem, estilo mui ordinário dos profetas. Profetizou mais Bandarra, que havia de haver tempo em que os portugueses (os quais quando ele isto escreveu, tinham rei e reino) haviam de desejar mudança de estado, e suspirar por tempo vindoiro, e que o cumprimento deste desejo e deste tempo, havia de ser no ano de quarenta: assim o dizem os versos do mesmo sonho:

Já o tempo desejado
É chegado,
Segundo o Primal assenta,
já se cerram os quarenta
Que se ementa;
Por um doutor já passado
O rei novo é levado
Já dá brado,
já assoma a sua bandeira
Contra a gripla parideira
Lagomeira
Que tais prados tem gastado.

A gripla significa Castela com muita propriedade, porque os reinos distinguem-se por suas armas, e o griplo é um animal composto de leão e de águia, que simboliza com as águias e leões, partes próprias dos escudos e armas de Castela, e chama-se com igual energia neste caso gripla parideira, porque por meio dos partos e casamentos, veio Castela a herdar tantos reinos e estados como possui, que foi também o título com que entrou em Portugal. Profetizou mais Bandarra, que o nosso rei havia de ser da casa de infantes, e que havia de ter por nome D. João, que havia de ser feliz e bem andante, e que com suma brevidade lhe haviam de vir novas de todas as conquistas a que ele chama terras presadas, as quais se declarariam pelo novo rei, e que dali por diante estariam firmes por ele, como tudo se tem visto inteiramente: os versos são no mesmo sonho:

Saia saia esse infante
Bem andante,
O seu nome é D. João
Tire e leve o pendão,
E o guião:
Poderoso e triunfante
Vir-lhe-ão novas em um instante
Daquelas terras presadas,
As quais então declaradas
E afirmadas
Pelo rei dali em diante.

Profetizou mais com circunstâncias prodigiosas que nas ditas terras presadas havia de haver naquele tempo dois vice-reis (o que nunca houve dantes), e que um deles, que era o Marquês de Montalvão, e outro, que foi o Conde de Aveiras, e o primeiro, não havia de ser deteúdo (isto é detido) no governo de que havia de ser tirado por suspeitas de infidelidade; mas que esta infidelidade não havia de estar no seu escudo, como verdadeiramente não esteve naquele tempo, por ser ele o instrumento da aclamação na Bahia, e em todo o estado do Brasil, onde mandou ordens com que foi El-Rei D. João aclamado. E pelo contrário, que o Conde de Aveiras havia de pôr alguma dificuldade com repugnância à aclamação de el-rei no estado da Índia, o qual estado com grande desejo e ímpeto, sem reparo do vice-rei o ter mão, quis aclamar, dizendo os versos do mesmo sonho:

Não acho ser deteúdo
agudo
Sendo ele o instrumento,
Não acho segundo sento
excelento
Ser falso no seu escudo;
Mas acho que o Lanudo
Mui sisudo
Que arrepelará o gato,
far-lhe-á murar o rato
De seu fato
Deixando-o todo desnudo.

E porque esta trova é a mais dificultosa do Bandarra, e a que ninguém jamais pôde dar sentido, posto que já fica explicada, a quero comentar, verso por verso, para que melhor se entenda.

Não acho ser deteúdo

Todos os que governaram as praças de Portugal nas conquistas foram deteúdos, ou detidos nelas, porque os conservou el-rei nos mesmos postos; só ao Marquês de Montalvão mandou sua majestade tirar por ocasião da fugida de seus filhos e do ânimo da marquesa, e por isso, diz Bandarra, que não haja de ser deteúdo.

O agudo

Os que conheceram o marquês sabem que lhe diz bem o nome de agudo, pela esperteza que tinha em todas suas ações e execuções, e ainda nas feições e movimento do corpo; mas mais que tudo no inventar traças, negócios, e se introduzir neles, sendo ele a maior parte, e não o povo, da aclamação em todo o estado do Brasil, a qual se executou com grande prudência e indústria, por haver na Bahia dois terços de castelhanos e napolitanos que puderam sustentar as partes de Castela, e, quando menos, causar alvoroços.

Não acho segundo sento

Ou, segundo sinto, que é já falar Bandarra com alguma dúvida da fidelidade do marquês, que neste lugar abonava verdadeiramente decerto, porque o marquês muito tempo foi fiel, e o modo com que acabou mostrou que o não fora sempre.

O excelento

Quer dizer que tem excelência por marquês e vice-rei, sendo o único vice-rei e o único marquês que governou o Brasil com todas estas circunstâncias. E por que lhe não chamam o excelente senão o excelento? Sem dúvida porque deste masculino tão desusado se inferisse a diferença do masculino e feminino. Como se dissera: a fidelidade de que falo, advirtam que é do marido e não da mulher do excelento, e não da excelenta, como logo se explica.

Ser falso no seu escudo

Para estranhar Bandarra como estranhou o ser tirado e não ser detido o marquês em seu governo, sendo ele o instrumento da aclamação, parece que bastava dizer que não era falso; mas acrescentou no seu escudo, porque assim como viu a fidelidade do marquês na aclamação, assim viu a infidelidade da marquesa e seus filhos, como se dissera: Falso não no seu escudo, mas no de sua mulher e seus filhos sim.

Mas acho que o lanudo

O Conde de Aveiras era mui cabeludo, tinha muitos cabelos nas sobrancelhas, orelhas e nariz, por dentro e por fora, e só dentro dos olhos não tinha cabelos, suposto que lhe chegavam os bigodes mesmo perto deles, e eu ouvi dizer a seu sobrinho, o Conde de Unhão, que seu tio tinha pelo corpo lã como um carneiro, e por isso Bandarra lhe chamou lanudo.

Mui sisudo

E só em ir segunda vez a Índia o não foi, mas no falar, no calar, no andar, no negociar, sisudo em todas suas ações, porque não há dúvida que tinha o Conde de Aveiras aquelas partes, porque o mundo chama aos homens sisudos; e por tal o tinha el-rei quando o não gabava.

Que arrepelará o gato

O gato significa o estado da Índia, porque tanto que chegou a nova da aclamação, quis logo aquele estado aclamar publicamente a el-rei, mas o vice-rei foi à mão ao ímpeto do povo, fechando-se dentro do paço para considerar como sisudo o que havia de fazer em matéria tão grande, e isto foi arrepelar o gato. E esta foi a última detença ou demora que a aclamação teve em Goa, o que se explica pelo murar do gato ao rato, que é aquela demora ou detença em que o gato está duvidando se remeterá ou não.

E far-lhe-á murar o rato
Do seu fato
Deixando-o todo desnudo.

Conclui Bandarra contra o conde como desgostado dele, que deixara o estado da Índia desnudo do seu fato; porque tirou da Índia muita fazenda, a qual propriamente se chama lá fato, assim como em Itália se chama roupa. Fundado eu nesta menos aceitação do Bandarra acerca do Conde de Aveiras, quando el-rei o fez segunda vez vice-rei, disse que me espantava muito de que sua majestade elegesse para vice-rei da Índia a um homem de quem o Bandarra dizia mal, porque lhe não podia suceder bem, e o efeito o mostrou. Todos estes versos que tenho referido vão continuados, e neles descrito o sucesso da aclamação do rei no reino e nas conquistas, com todas as circunstâncias, e logo imediatamente se segue no mesmo sonho:

Não tema o turco não
Nesta sesão,
Nem o seu grande mourismo
Que não recebeu batismo
Nem o crismo,
É gado de confusão etc.

Estes versos contêm uma circunstância admirável da profecia, porque não só declarou Bandarra as coisas que haviam de ser, e o tempo em que haviam de suceder, senão também os tempos em que não haviam de ser. O principal assunto do Bandarra é a guerra que el-rei há de fazer ao turco, e a vitória que dele há de alcançar: e porque não cuidássemos toda a empresa havia de ser logo depois da aclamação do novo rei, advertiu, e quer que advirtamos, que a empresa do turco não é para o tempo da aclamação, senão para outro tempo, e para outra sesão mesmo depois. E por isso disse que nesta sesão bem podia o turco estar sem temor.

A esta profecia negativa do turco se junta outra negativa do papa, o qual papa supõe Bandarra que não há de reconhecer a el-rei senão depois que o turco entrar pelas terras da Igreja, e assim o declaram os versos do sonho segundo:

O rei novo é acordado
Já dá brado,
Já arressoa o seu pregão,
Já Levi lhe dá a mão,
Contra Siquém desmandado.

Esta copla se aplica adiante; por ora basta dizer que Levi é o papa, e Siquém o turco, e que quando Siquém se desmandar pelas terras da Igreja, então dará Levi a mão ao rei novo, que já neste tempo será acordado; onde o que se deve muito notar é aquele já Levi lhe dá a mão, na qual palavra supõe Bandarra que até então lha não quis dar, como em efeito nenhum dos três papas, Urbano, Alexandre e Inocêncio lha não quiseram dar, por mais que foram requeridos pelos povos, com tantos gêneros de embaixadas.

Por muitas vezes disse eu a el-rei, e principalmente quando me mandou a Roma, que o papa não havia de dar bispos, e quando vinha a nova que já os dava ou queria dar, sempre me ri disso, assim em Portugal como no Maranhão, de que são testemunhas os que me ouviram dizer por galantaria, que o turco era o que havia de dar os bispos, e não o papa.

O ser rei o infante D. Afonso, e o ser governador das armas João Mendes de Vasconcelos, também é profecia do Bandarra. Do infante disse:

Vejo subir um infante
No alto de todo o lenho.

Todos cuidavam e esperavam por natural conseqüência, que o príncipe D. Teodósio, que Deus tem, havia de suceder a seu pai, e que na volta que deu, a que o Bandarra chama roda triunfante, havia ele de ser o que sucedesse, e subisse no alto de todo o lenho; mas vejo que é o infante D. Afonso, porque assim estava escrito. Muitas vezes me ouviu dizer el-rei e vossa senhoria do mesmo príncipe, que dele não falava Bandarra palavra; e de João Mendes de Vasconcelos, diz:

Vejo subir um fronteiro
Do reino de trás da serra,
Desejoso de pôr guerra
Esforçado cavaleiro.

Já escrevi a vossa senhoria que quando no Maranhão se soube que o castelhano estava sobre Olivença, e que o Conde de S. Lourenço governava as armas, disse eu diante de muitas pessoas eclesiásticas e seculares que o que havia de fazer as facções era João Mendes de Vasconcelos, fundado nesta mesma copla, interpretando ser ele o fronteiro detrás da serra, porque era ele naquele tempo de Trás-os-Montes. Todo este papel que aqui vai lançado escrevi na mesma conformidade em os últimos de abril deste ano, como se verá pela primeira via dele, que logo então mandarei pelo Maranhão. Agora ouvi que João Mendes está não só retirado da guerra, mas preso, com que parece errou minha conjetura na explicação, ou na aplicação destes versos.

Facilmente admitirei este erro, e que fala Bandarra de outro fronteiro que seja de Trás-os-Montes, ou do que nos dizem que é hoje o Conde de S. João, de cujo valor e esforço e cavalarias chega por cá tão honrada fama que bem lhe quadra o nome de esforçado cavaleiro. Mas se houver quem queira persistir no primeiro sentido que demos aos versos, poderá tirar deles a primeira solução, e dizer o que disse antes de se saber cá a retirada do sítio de Badajós. Dizia eu (de que eu tenho muitas testemunhas) que quando se não conseguisse a entrada da praça, nem por isso ficava desfeita a acomodação ou aplicação dos versos, antes então ficam melhor entendidos e construídos, porque as palavras do desejoso de pôr guerra, não significam efeitos senão desejos, posto que tão galhardamente manifestados. Onde também se deve notar a praxe de pôr guerra, que apropria de sitiar guerra, e não de vencer exércitos, e quanto à copla que se segue depois destas falando do mesmo sujeito:

Este será o primeiro
Que porá o seu pendão
Na cabeça do dragão
Derribá-lo-á por inteiro,

que é uma profecia e promessa do futuro, a que tanto se pode caminhar do castelo de Lisboa, como de qualquer parte, porque fala manifestamente da guerra do turco, como adiante se verá mais claro. E diz Bandarra que aquele mesmo fronteiro que ele mesmo viu sair do reino detrás da serra será o que há de pôr o pendão na cabeça do turco em Constantinopla, e que juntamente o há de derribar e vencer.

Isto é o que digo, isto é o que me parece, protestando que assim nestes versos, como em todos os de Bandarra, não é minha tenção tirar o direito a quem o tem, ou parece que o tem, e muito menos tirá-lo a outrem, que é o que no nosso reino se sente. Tudo o que fica dito são as coisas que mais palpavelmente temos visto cumprido das profecias do Bandarra, as quais se bem se distinguirem e contarem, achar-se-á que são mais de cinqüenta, fora infinitas outras que delas dependem, e com elas se envolvem.

A todas conheceu o Bandarra e anteviu com tanta individuação de tempos, lugares, nomes, pessoas, feições, modos e todas as outras circunstâncias mínimas, como quem as via com o lume mais claro que o dos mesmos olhos dos que ao depois as viram; e como todos estes sucessos eram totalmente contingentes, e dependentes da liberdade humana, e de tantas liberdades quantas eram os homens, arcebispos, governadores, cidades e estados de todo o reino e suas conquistas, bem se colhe que por nenhuma ciência humana, nem angélica nem diabólica, podia conjeturar Bandarra a mínima parte do que disse, quanto mais afirmá-la com tanta certeza, e escrevê-la com tanta verdade, e individuá-lo com tanta sutileza, que é de que se preza no prólogo de sua obra.

Caso miúdo sem conto.

Foi individuado com tanta certeza que bem mostra foi lume profético, sobrenatural e divino, o qual alumiou o entendimento deste homem idiota e humilde, para que as maravilhas de Deus que nestes últimos tempos haviam de vir ao mundo. Tivessem também aquela preeminência de todos os grandes mistérios divinos, que é serem muito dantes profetizados.

Bem vejo que haverá quem duvide algumas das explicações que dou aos textos referidos, posto que são tão claras e correntes, mas para ao intento que pretendo provar, que é o espírito profético de Bandarra, bastam aquelas que todo; confessam, e que não admitem dúvida alguma, que é grande parte das referidas.

E se não pergunto: Quem disse a Bandarra que em tempo de El-Rei D. João o 3.° havia faltar sucessor a Portugal, e que havia passar a coroa a reino estranho? Quem disse a Bandarra que a gripa parideira, ou Castela, por um parto, que foi Filipe 2.° filho da infante Imperatriz D. Isabel, havia de lograr Portugal? Quem lhe disse que o tempo desejado da redenção havia de ser no ano de quarenta? Quem lhe disse que o restaurador havia de ser rei levantado; e quem lhe disse que este rei se havia de chamar D. João, e que havia de ser feliz e descendente de infantes? Quem lhe disse que o haviam de reconhecer e aceitar logo as conquistas, e que elas dali por diante haviam de estar firmes, sem nenhuma vacilar nem retroceder? Quem lhe disse que uma destas conquistas havia de ser governada naquele tempo por um homem mui sisudo e cabeludo, e que o que governasse se havia chamar excelência, e que era agudo, e que sendo instrumento da aclamação havia de ser tirado do cargo por suspeitas da infidelidade; e que essa infidelidade não havia de estar no seu escudo? Finalmente, quem lhe disse que o papa não havia de aceitar este rei, e que lhe havia de suceder na casa um infante, e não príncipe seu primogênito? E certo que só Deus o podia dizer, e revelar ao Bandarra todos estes futuros, e qualquer deles, e com a mesma certeza se deve ter e afirmar, que foi Bandarra verdadeiramente profeta. Resta agora ver se profetizou o Bandarra alguma profecia D'el-Rei D. João, que ainda não esteja cumprida, que é o segundo fundamento da nossa conseqüência.

PROVA-SE A SEGUNDA
PROPOSIÇÃO DO SILOGISMO

As coisas que o Bandarra profetizou D'el-Rei D. João, que ele ainda não obrou, e há de obrar, são tão grandes, e tão extraordinárias que à vista delas não tiveram as passadas nada de admiração: começa com este prólogo a narração delas, o seu profeta tio sonho segundo:

Ó quem tivera
Para dizer
Os sonhos que homens sonham!
Mas hei medo que me ponham
De mos não quererem crer.

Isto mesmo, senhor bispo, é profecia do que hoje vemos: há de estar Bandarra corrido e envergonhado na opinião de muitos, até que os feitos maravilhosos D'el-Rei D. João o 4.° nosso senhor, conquistem aos versos do seu profeta a fé que já a primeira parte deles nos tem bem merecida. Diz Bandarra primeiramente que sairá el-rei à conquista da Terra Santa para se fazer senhor dela, deixando o reino totalmente despejado, porque há de levar consigo tudo o que nele houver de homens que possam tomar armas. Assim começa o princípio do diálogo dos bailes:

Vejo vejo, direi vejo,
Agora que estou sonhando,
Semente D'el-Rei Fernando
Fazer um grande despejo,
E sair com grão desejo
E dizer: esta casa é minha,
Agora que cá me vejo.

Chama a el-rei semente D'el-Rei Fernando, porque El-Rei D. João o 4.°, é 4.° neto D'el-Rei D. Fernando o Católico, tão conhecido e celebrado rei naquele tempo. E que esta saída seja para Jerusalém, e esta casa seja a casa santa, de tudo o que se segue se deixar ver claramente. Diz Bandarra que esta jornada seja por mar, e que o feito de lá será tomar el-rei ao turco com facilidade e sem resistência.

Vi um grão leão correr
Sem se deter
E levar sua viagem,
Tomar o porco selvagem
Na passagem
Sem nada lho defender.

Porco selvagem é o turco, como declarou o Bandarra em muitos lugares. No sonho segundo fala no porco selvagem, e da mesma viagem diz assim:

Já o leão vai bradando,
E desejando
Correr o porco selvagem,
E tomá-lo-á na passagem,
Assim o vai declarando:
Este rei de grão primor
Com furor
Passará o mar salgado
Em um cavalo enfreado,
E não selado,
Com gente de grão valor
Este diz socorrerá
E tirará
Aos que estão em tristura;
Deste conta a escritura
Que o campo despejará.

As gentes de que aqui fala, que diz estarão em tristura, e serão socorridos por el-rei, são os povos de Itália, que estarão oprimidos pelas armas do turco, que neles fará grandes crueldades, como claramente o solutivo diz, e o mesmo Bandarra no diálogo dos bailes, aonde começa por Veneza, que será e hoje é a primeira que padecerá as invasões do turco, e que gastará nesta guerra seus tesouros:

Também os venezianos
Com as riquezas que têm
Virá o rei de Salém
julgá-los-á por mundanos.

Chama rei de Salém ao turco, porque o turco é hoje senhor de Jerusalém, que na escritura se chama Salém; e continuando a descrever as crueldades que fará o turco em Itália, diz logo após os versos acima:

Já os lobos são ajuntados
De alcatéia na montanha,
Os gados têm degolados,
E muitos alobegados,
Fazendo grande façanha:
O pastor-mor se assanha,
Já ajunta seus ovilheiros,
E esperta sua campanha,
Com muita força e manha
Correrá os pegureiros.

O pastor-mor é o papa, que vendo Itália e Roma neste aperto, chamará os príncipes cristãos, que havendo tantos anos que o turco está fazendo guerra em Itália, eles estão divertidos, como se dormiram. A estes brados do pontífice acudirão os príncipes cristãos, e entre eles o famoso rei de Portugal, como repete e declara o mesmo Bandarra no sonho primeiro, profetizando juntamente a ruína do império otomano, e fim da lei de Mafoma, e destruição da casa de Meca:

A Lua dará grã baixa,
Segundo o que se vê nela,
E os que têm lei com ela
Porque se acaba a taixa
Abrir-se-á aquela caixa
Que até agora foi cerrada,
Entregar-se-á a forçada
Envolta na sua faixa.

E declarando quem será o autor e instrumento de tudo, continua:

Um grande leão se erguerá,
E dará grandes bramidos,
Seus brados serão ouvidos
E a todos assombrará;
Correrá e morderá,
E fará mui grandes danos,
E nos reinos africanos
A todos sujeitará:
Entrará mui esforçado,
Será de toda a maneira;
De cavalos de madeira
Se verá o mar coalhado,
Passará e dará brado:
Na terra da promissão,
Prenderá o velho cão
Que anda mui desmandado.

Daqui se fica entendendo que a passagem onde diz Bandarra que o leão há de tomar o porco selvagem, é aquela parte do mar que há entre Itália e Constantinopla, que vem a ser a boca do mar Adriático em o arquipélago. De sorte que o turco obrigado das armas cristãs há de fugir e retirar-se para suas terras, e nesta retirada e passagem há de ser tomado; coisa que não parecerá dificultosa, senão fácil, a quem tiver conhecimento do sítio, porque como aquele mar é um bosque das ilhas em que se podem armar ciladas, as hão de armar ao turco para o apanharem. Assim o diz Bandarra no mesmo baile:

Depois de apercebidos,
E as montanhas salteadas
Por homens mui sabidos,
E pastores mui escolhidos,
Que sabem bem as pisadas,
Armar-lhe-ão nas passadas
Trampas, cepos de aseiros,
Atalaias nas estradas,
E bestas nas ameijoadas
Com tiros muito ligeiros.

Não só há de el-rei fazer isto por meio de seu exército, mas diz Bandarra que por sua pessoa há de ferir ao turco:

Já o leão é esperto
Mui alerto,
já acordou, anda caminho,
Tirará cedo do ninho
O porco; e é mui certo
Fugirá para o deserto:
Do leão e seu bramido
Demonstra que vai ferido
Desse bom rei encoberto,

porque o turco assim ferido se há de retirar, e depois desta retirada diz Bandarra, que ele mesmo se há de vir entregar e sujeitar a el-rei. Diálogos dos bailes:

Ó senhor tomai prazer,
Que o grão-porco selvagem
Se vem já de seu querer
Meter em vosso poder
Com seus portos e passagens.

Note-se o verso com seus portos e passagens, do que se confirma bem que a passagem de que fala é mar de ilhas, e entre Itália e Constantinopla. Diz mais Bandarra, que entregue o turco, se repartirão as suas terras entre os príncipes cristãos que forem a esta guerra, e que a El-Rei D. João caberá Constantinopla. No mesmo diálogo dos bailes:

Tanja-se a frauta maior,
Ajunte-se todo o rebanho,
E eu com vosso pastor
Com mui grã soma de amor:
Vamos a partir a ganho
Montes, vales, e pastores,
Digo vamos a partir a ganho,
Tudo nos é sofranganho,
Montes, vales, e pastores,
E repugnam os bailadores
Que não entre aqui estranho.

E mais abaixo diz:

Sus! Antes de mais extremos
Vai-se Fernando e Constança,
E pois que tudo já vemos,
Pelo bem que lhe queremos
Seja ele o mestre da dança.

Constança significa Constantinopla, e Fernando significa el-rei, que baila com Constança: o ser mestre da dança, bem se vê que quer dizer que será Constantinopla sua, e que terá nesta repartição o maior lugar; e não faça dúvida o nome de Fernando, porque os nomes das figuras deste diálogo são supostos, e não os próprios. E assim como as pessoas que formam o mesmo diálogo se chamam Pedro, João, André, e Garcia, não sendo esses os nomes dos príncipes que hão de sair à conquista de Jerusalém, porque não costumam ser tais os nomes dos príncipes estrangeiros, assim o nome de Fernando não é próprio do rei, senão suposto.

E se houver quem queira insistir sem razão, em que este seja o nome próprio do rei conquistador da Terra Santa, facilmente se pode dizer que el-rei em sua ressurreição, ou em sua assunção ao império, tomará o nome D'el-Rei Fernando, e se assim for diremos que deixou Santo Antônio o nome de Fernando em S. Vicente de Fora, para que El-Rei D. João o tomasse.

Nesta mudança ou acrescentamento de nome (que bem pode el-rei acrescentar o nome de Fernando ao nome de João) se verifica também aquela tradição que diz, o encoberto terá o nome de ferro; porque nas partes de Levante, onde há de ser esta empresa, Fernando chama-se Ferrante, assim como Jacó, Jaques, ou também se pode dizer que assim como Bandarra chamou infante a el-rei, por ser neto do infante D. Duarte, assim lhe chama também Fernando, por ser semente D'el-Rei Fernando, como acima temos dito: mas sem recorrer a nada disto, o mais fácil e natural é dizer que o nome de Fernando neste diálogo é suposto, e não próprio como os demais. Feito pois el-rei senhor de Constantinopla, diz Bandarra que será eleito imperador, com eleição justa, e não subornada:

Serão os reis concorrentes
Quatro serão, e não mais,
Todos quatro principais
Do Levante ao Poente;
Os outros reis mui contentes
De o verem imperador,
E havido por senhor
Não por dádivas, nem presentes.

Estes reis são quatro que se acharão na guerra contra o turco, os quais conhecendo que a El-Rei D. João se deve toda a vitória, lhe darão em prêmio dela a coroa imperial. E feito el-rei imperador de Constantinopla, diz Bandarra com grande propriedade, que ficará havido por grão-senhor, porque o turco nas suas terras intitula-se grão-senhor, e o mesmo nome lhe dão em Itália.

E que a El-Rei D. João se haja de dever toda a vitória, diz Bandarra no sonho seguinte:

De quatro reis, o segundo
Haverá toda a vitória.

Chama-se El-Rei D. João nesta ocasião o segundo, bem podia ser, por ter tomado o nome de Fernando, porque então será Fernando segundo. Mas pode-se chamar segundo, porque os reis de Portugal verdadeiramente têm o segundo lugar entre os reis cristãos, sendo o primeiro indecisamente o de França, ou de Espanha, que inda o pleiteiam diante do pontífice, o qual nunca o quis decidir. Também pode ter o segundo lugar nesta empresa como general do mar, que há de ser, sendo o primeiro lugar o rei que for general da terra. Enfim, poder-se-á chamar segundo por outro qualquer incidente que o tempo interpretará mais facilmente, do que nós o podemos agora adivinhar.

Coroado por imperador, diz Bandarra, que voltará el-rei vitorioso com dois pendões, que deve de ser o de rei de Portugal, e de imperador de Constantinopla:

De pendões e orações
Irá fortemente armado,
Dará nele S. Tiago
Na volta que faz depois,
Entrará com dois pendões
Entre os porcos sedeúdos
Com fortes braços e escudos,
E de seus nobres infantões.

Estes porcos sedeúdos, entre os quais entrará el-rei, serão os bachás e capitães do turco, e os levará diante de si, e no seu triunfo quando voltar.

Finalmente, diz Bandarra, que o mesmo rei há de introduzir ao sumo pontífice os dez tribos de Israel, que naquele tempo hão de sair e aparecer no mundo com pasmo de todo ele. No princípio do sonho primeiro introduz Bandarra a dois hebreus, um chamado Dá, outro Efraim, os quais vêm para falar ao pastor-mor, que é o sumo pontífice, e para serem introduzidos pedem entrada a Fernando, que já dissemos representa a El-Rei D. João, e dizem assim por modo de diálogo:

   Efraim. Dizei, senhor, poderemos
Com o grão-pastor falar,
E daí lhe prometemos
Ricas jóias que trazemos,
   Fernando. Se no-las quiser tomar?
Judeus que lhe haveis de dar?
   Judeus. Dar-lhe-emos grande tesouro,
Muita prata, muito oiro,
Que trazemos d'além-mar;
Far-nos-eis grande mercê
De nos dardes vista dele.
   Fernando. Entrai, judeus, se quereis,
Bem podeis falar com ele,
Que lá dentro o achareis.

Não declara Bandarra o lugar onde isto há de suceder, se em Jerusalém, se em Roma, quando lá for el-rei, ou se em Portugal, quando os dez tribos vierem. Mas em qualquer parte que suceda será uma maravilha grande, ou a maior das maiores que sucederam, nem se ouviram no mundo. Assim o pondera o mesmo Bandarra em uma das suas respostas:

Antes destas coisas serem,
Desta era que dizemos
Mui grandes coisas veremos,
Quais não viram os que viveram,
Nem vimos, nem ouviremos:
Sairá o prisioneiro
Da nova gente que vem,
Desse tribo de Rubem,
Filho de Jacó primeiro
Com tudo o mais que tem.

Mas onde Bandarra por inteiro trata esta grande matéria é no sonho 3.°, o qual todo gasta na descrição ou narração portentosa da vinda e aparecimento desta gente, e com estilo muito mais levantado do que costuma, representando pois que sonhava, diz assim:

Sonhava com grão prazer,
Que os mortos ressuscitavam,
E todos se alevantavam
E tornavam a renascer.
E que via aos que estavam
Trás os rios escondidos,
Sonhava que eram saídos
Fora daquela prisão.

O profeta Esequiel falando no cap. 33.° à letra desta mesma restituição dos dez tribos, como se vê claramente dos três capítulos seguintes, chamava a esta restituição ressurreição; porque este povo estava até agora, como enterrado e sepultado, porque ninguém sabia dele; e seguindo o Bandarra esta mesma praxe de Esequiel diz que sonhava que eram saídos de sua prisão os que estão escondidos detrás dos rios: os dez tribos quando desapareceram passaram da outra banda do rio Eufrates e de então para cá se não sabe deles. Vai por diante Bandarra e discursando em particular como vinham, ou como virão cada um dos dez tribos, diz:

Vi ao tribo de Dã
Com os dentes arreganhados,
E muitos despedaçados
Da serpente e do dragão!
E também vi a Rubem
Com grã voz de muita gente,
O qual vinha mui contente
Cantando Jerusalém.
Ó quem vira já Belém,
Esse monte de Sião,
E visse o rio Jordão
Para se lavar mui bem!
Vi também a Simeão,
Que cercava todas as partes
Com bandeiras e estandartes,
Neftelim e Zabulão,
Gar vinha por capitão
Desta gente que vos falo,
Todos vinham a cavalo,
Sem haver um só peão.

Notem que entre estes capitães, ou cabeças dos tribos, não se nomeia o de Judá, nem o de Levi, nem o de Benjamim, sendo os dois primeiros um real, outro sacerdotal, porque estes três tribos são os que ficaram. As propriedades com que os descreve, não me detenho em as comentar, porque fora coisa larga e fora do meu intento: pela maior parte são tiradas das dignidades das pessoas, e etimologia dos nomes e das bênções que Jacó deitou a estes seus filhos; só advirto que o dizer Bandarra, que vinham todos a cavalo, sem haver nenhum peão, é tirado do profeta Isaías no cap. 66.° onde diz estas palavras: - quem viu, nem ouviu jamais coisa semelhante (diz o profeta) porventura parirá a terra um dia ou nascerá uma nação inteira? Pois assim parirá Sião, e assim lhe nascerão seus filhos. As alegrias deste parto serão de Portugal, também há quem diga que as dores. Continua Bandarra com a entrada dos dez tribos, e introduz que do meio daquela companhia saíra um velho honrado a falar com ele, e que entre outras coisas lhe perguntou, se era porventura hebreu dos que ali vinham buscar, e diz Bandarra que lhe responderam assim:

Tudo o que me perguntais
(Respondi assim dormente):
Senhor não sou dessa gente
Nem conheço esses tais;
Mas segundo os sinais
Vós sois do povo cerrado,
Que dizem estar juntado
Nessas partes orientais:
Muitos estão desejando
Serem os povos ajuntados,
Outros muitos avisados
O estão arreceiando:
Arreceiam vir no bando
Esse gigante Golias,
Mas por ver Enoque e Elias
Doutra parte estão folgando.

O gigante Golias significa aqui o Anticristo, e diz Bandarra que há muitos que se têm por sábios que receiam a vinda dos dez tribos, e a conversão dos judeus, porque têm para si que quando isto for já é chegado o fim do mundo, e que já estamos no tempo do Anticristo, sendo que entre um e outro se hão de passar muitos centos de anos, como consta das escrituras, nas quais diz Bandarra (e diz bem) que esta restituição do povo hebreu à sua e por meio do conhecimento de Cristo é coisa mais freqüente e repetida nos profetas de quantas eles escreveram: oiçamos o Bandarra depois de o velho lhe perguntar se cria em um só Deus:

Eu quisera-lhe responder,
E tocar-lhe em a lei,
Senão nisto acordei
E tomei grande prazer;
E depois de acordado
Fui a ver as escrituras,
E achar muitas pinturas,
E o sonho afigurado
Em Esdras o vi pintado,
E também vi Isaías
Que nos mostra nestes dias
Sair o povo cerrado,
O qual logo fui buscar
.......Esequiel;
As damas de Daniel
Comecei de as olhar.

O mesmo podem fazer os curiosos, e terão muito que olhar e que ver, e que admirar principalmente nos três primeiros capítulos de Esequiel que atrás deixo citados, e só digo por remate desta matéria dos dez tribos, que também eles se hão de sujeitar às quinas de Portugal, e receber por seu rei o nosso grande monarca. E assim o diz o nosso Bandarra antes dos sonhos:

Portugal tem a bandeira
Com cinco quinas no meio,
E segundo vejo e creio
Este é a cabeceira,
E porá sua cimeira
Que em Calvário lhe foi dada,
E será rei de manada
Que vem de longa carreira.

A vitória do turco e redução dos judeus se seguirá também à extirpação das heresias por meio deste glorioso príncipe. Bandarra nas trovas do fim

Vejo erguer um grão rei
Todo bem-aventurado,
E será tão preparado
Que defenderá a grei;
Este guardará a lei
De todas as heresias,
Derribará as fantasias
Dos que guardam o que não sei,
Todos terão um amor
Gentios como pagãos.
Os judeus serão cristãos,
Sem jamais haver error,
Servirão um só Senhor,
Jesus Cristo que nomeio;
Todos crerão que veio
O ungido Salvador.

A este universal conhecimento de Cristo, diz Bandarra, que sucederá por coroa de tudo, a paz universal do mundo, cantada e prometida por todos os profetas, debaixo de um só pastor e de um só monarca, que será o nosso fidelíssimo rei, instrumento de Deus para todos estes fins de sua glória. Bandarra no sonho segundo:

Tirará toda a escória,
Será a paz em todo o mundo,
Dos quatro reis o segundo
Haverá toda a vitória,
Será dele tal memória.
Por ser guardador da lei,
Pelas armas deste rei
Lhe darão triunfo e glória.

Porque todo este triunfo e toda esta glória será de Cristo e de suas chagas, que são as armas do rei; e note-se que de nenhuma coisa faz Bandarra tão freqüentemente menção, como destas chagas de Cristo, e destas armas de Portugal, a cuja virtude atribui sempre as maravilhas que escreve, porque não venha ao pensamento de algum rei da Europa, ou do mundo, cuidar que pode ele ser o sujeito destas profecias. Assim que, resumido tudo o que fica dito, e deixando outras coisas futuras, e ainda não cumpridas, que Bandarra profetizou D'el-Rei D. João o 4.°, as principais de maior vulto são sete:

SETE COISAS PRINCIPAIS DA PROFECIA

Primeira.

Que sairá do reino com todo o poder dele, e navegará a Jerusalém.

Segunda.

Que desbaratará o turco na passagem de Itália e Constantinopla.

Terceira.

Que o ferirá em sua própria mão, e que ele se lhe virá entregar.

Quarta.

Que ficará senhor da cidade e império de Constantinopla, de que será coroado imperador.

Quinta.

Que tornará com dois pendões vitoriosos ao seu reino.

Sexta.

Que introduzirá ao pontífice e à fé os dez tribos de Israel prodigiosamente aparecidos.

Sétima.

Que será instrumento da conversão e paz universal de todo o mundo, que é o último fim para que nosso Senhor o escolheu.

E faltando a vida a El-Rei D. João para obrar todas estas coisas, e sendo certo que as há de obrar, pois assim está profetizado, bem assentado parece que fica este segundo fundamento de nossa conseqüência. Mas perguntar-me-á vossa senhoria com razão, donde provo eu este rei de que Bandarra fala é El-Rei D. João o 4.°? Digo que o provo com o mesmo Bandarra em dois lugares para comigo evidentes. O primeiro nas trovas antes do sonho diz assim:

Este rei tão excelente
De quem tomei minha teima,
Não é de casa goleima,
Mas de rei, primo e parente;
Vem de mui alta semente,
De todos quatro costados
Todos reis de prima grados
De Levante até o Poente.

De maneira que diz Bandarra, que o assunto ou teima de suas profecias é um só rei mui excelente, com quem tomei minha teima: e daqui se segue, eficaz e evidentemente, que o assunto e teima das ditas profecias é D'el-Rei D. João o 4.°, porque é coisa certa e conhecida, e vista pelos olhos de todos, que em El-Rei D. João o 4.° se cumpriram todas as profecias passadas, como se prova da primeira proposição deste silogismo: logo se o assunto das profecias do Bandarra é um só rei, e consta que El-Rei D. João o 4.° foi o assunto das profecias passadas, bem se segue que ele é também o assunto das profecias futuras; porque se as profecias passadas se cumpriram em El-Rei D. João o 4.°, e as futuras se houveram de cumprir em outro, segue-se que a teima e o assunto do Bandarra não era um só rei, senão dois.

Poderá alguém dizer que este rei de que fala Bandarra não é nenhum rei em particular, senão o rei de Portugal em comum; e ainda que estas profecias se verifiquem em um rei em particular, e em outro, sempre se verificam no rei de Portugal. Não faltou quem isto dissesse ou cuidasse, mas quis Deus que se explicasse Bandarra, o qual nesta mesma trova declara que não fala do rei de Portugal em comum, senão de tal rei em particular, de tal pessoa, de tal indivíduo, filho de tais pais, neto de tais avós, de tal descendência, como aqui descreve.

1.° Diz que este rei não é de casta goleima, porque El-Rei D. João não é descendente da casa de Áustria, casta goleima; porque os que comem muito, chama-lhe o mundo goleimas, e os príncipes da casa de Áustria (como todos os alemães) são notados de muito comer.

2.° Diz que este rei é príncipe e parente de reis, a qual propriedade admiravelmente mostra a pessoa D'el-Rei D. João porque toda a maior nobreza que Bandarra podia dar a El-Rei D. João era ser primo e parente de reis, porque El-Rei D. João não era filho nem neto de reis, como os outros reis são comumente, senão somente primo e parente de reis; primo D'el-Rei de Castela, primo d'el-rei de França, primo do imperador, parente dos mais reis da Europa; mas suposto que não é filho, diz Bandarra:

Que vem de mui alta semente
De todos quatro costados.

3.° Que é o infante D. Duarte filho D'el-Rei D. Manuel e da rainha D. Maria, filha dos reis católicos, e por estes dois avós vem a ser el-rei descendente dos reis de Portugal, Castela, e Aragão, que eram os maiores reis do Poente, e dos reis de Nápoles e Sicília, que eram os maiores reis do Levante.

Sendo logo certo que Bandarra nas suas profecias fala de um tal rei em particular, e de uma tal pessoa, e de um tal indivíduo, e sendo também certo que este rei, esta pessoa, este indivíduo, é El-Rei D. João o 4.°, como se prova pelas qualidades pessoais, e pelos sinais individuantes com que o mesmo Bandarra descreve este rei; segue-se por infalível conseqüência, que assim como deste rei se entenderam as profecias passadas, assim dele se entendem as futuras do que está por vir. E nesta conformidade chamou Bandarra com muita galanteria ao seu assunto teima, porque se depois de tratar de um rei, deixara este e tratara de outro, não fora isso teimar com um, como ele diz: Este reino excelente, com quem tomei minha teima: verdadeiramente depois de el-rei estar morto e sepultado, dizer ainda que há de ir a Jerusalém conquistar o turco, parece que é demasiado teimar, mas esta é a teima do Bandarra.

O segundo lugar em certo modo é mais certo e claro, porque fala D'el-Rei D. João, nomeando-o por seu próprio nome. Vai tratando das armas de Portugal, e chagas de Cristo, e depois de as antepor às mais armas de todos os reis e reinos, diz assim no sonho 1.°:

As armas e o pendão,
E o guião,
Foram dadas por vitória
Daquele alto rei da glória,
Por memória
A um santo rei varão;
Sucedeu a El-Rei D. João,
Em possessão
O calvário por bandeira,
Levá-lo-á por cimeira,
Alimpará a carreira
De toda a terra do cão.

O rei santo varão, a quem foram dadas as insígnias da paixão de Cristo, em memória da vitória, foi El-Rei D. Afonso Henriques.

Estas armas da paixão a quem chamam calvário, sucederam a El-Rei D. João em possessão, por serem em sua bandeira. E que fará El-Rei D. João com essa bandeira, com essas armas, e com esse calvário? Levá-lo-á por cimeira, e alimpará a carreira de toda a terra do cão. Que El-Rei D. João, que foi o segundo, como fundador de Portugal, e depois de perdido seu restaurador, sucedendo a El-Rei D. Afonso Henriques na possessão do reino, e do brasão das chagas de Cristo, esse mesmo Rei D. João, e não outro, será o que levará as insígnias da paixão de Cristo por cimeira de seu elmo. Esse mesmo rei João, e não outro, será o que alimpará a carreira da terra do cão, restaurando a Terra Santa, e desimpedindo os caminhos dela, que o turco tem ocupado há tantos anos.

Todos os sucessos deste rei prometido, divide Bandarra em duas partes principais, a primeira contém os sucessos da aclamação de Portugal, a segunda contém os sucessos da conquista do turco e Terra Santa. E para que se visse que uns e outros pertenciam nomeadamente a El-Rei D. João, quando Bandarra fala dos primeiros, no princípio do sonho primeiro diz que el-rei se chama João:

O seu nome é João.

E quando fala no segundo, no mesmo sonho diz também que el-rei se chama João:

Sucedeu a El-Rei João
Em possessão
O calvário por bandeira.

E note-se a palavra em possessão porque à possessão do reino, foi que El-Rei João sucedeu, que quanto ao direito dele sempre o teve, como o mesmo Bandarra diz:

Louvemos este varão
De coração,
Porque é rei de direito.

O qual direito afirmado e confirmado pelo Bandarra, é novo e claro sinal de ser El-Rei D. João o 4.° o sujeito de quem falam as profecias, porque se o direito D'el-Rei D. João fora direito reconhecido e recebido por todos, como é o direito D'el-Rei D. Sebastião, e de outros reis, não tinha necessidade de dizer que era rei de direito. Mas porque o direito D'el-Rei D. João é direito duvidado e pleiteado, por isso declara Bandarra que é verdadeiramente rei de direito, e por este mesmo direito, posto que todos o confessam com a boca, quando aclamaram a el-rei houve porém alguns que o negaram com o coração: a estes já tira Bandarra a pedra, quando diz, louvemos a este varão de coração.

Aquelas palavras que já repetimos não toma o turco não nesta sessão também provam que El-Rei D. João (de cuja aclamação falava Bandarra) é o que há de vir conquistar o turco. Não diz que não tema o turco El-Rei D. João, mas diz que o não tema nesta sessão, porque nela havia de ser só restaurador do reino de Portugal, e na sessão que se espera, é que há de ser conquistador e destruidor do turco, e que se há de fazer temer dele. E o mesmo se convence claramente da combinação de dois lugares ou versos, um do sonho 1.°, outro do sonho segundo. O verso do sonho 1.° diz assim:

O rei novo é alevantado.

E fala da aclamação passada no ano de quarenta, como a provou o sucesso. O verso do sonho 2.° diz assim:

O rei novo é acordado.

E fala da jornada futura, e conquista do turco, para a qual há de acordar o rei novo, como provam os versos que a este se seguem:

O rei novo é acordado,
Já dá brado,
Já arressoa o seu pregão,
Já Levi lhe dá a mão,
Contra Siquém desmandado.

O Siquém é o turco, que se há de desmandar por Itália, e terras da Igreja, donde claramente se vê uma e outra profecia, assim do passado como do futuro; ambas se entendem a El-Rei D. João, porque o que foi levantado é o reino novo, e o que há de ser acordado há de ser rei novo:

O rei novo é levantado,
O rei novo é acordado.

E não se deixa passar sem reparo o verso já Levi lhe dá a mão, que prova o mesmo, porque aquele já é relativo, e quem diz já Levi lhe dá a mão, supõe que dantes lha não deu, ou lha não quis dar: logo aquele rei a quem o papa há de dar a mão depois, é o mesmo a quem a não deu, nem quis dantes dar, que é El-Rei D. João o 4.°

Prometi provar esta gloriosa conclusão com dois lugares de Bandarra, e já a tenho provado com seis, e para encurtar argumentos, e fechar este discurso (que é a chave de todo este papel) com uma demonstração irrefragável, digo assim:

Aquele rei é o que há de conquistar e vencer o turco, no qual se acham todos os sinais e diferenças individuantes, com que Bandarra em todas suas profecias o retrata, sed sic est: que El-Rei D. João o 4.°, que hoje está sepultado em S. Vicente de Fora, é aquele em quem se acham pontualmente todos estes sinais e diferenças individuantes, sem faltar nenhuma: logo El-Rei D. João o 4.° é o que há de conquistar o turco, e a quem pertencem e esperam todos estes prodígios desta fatal empresa; e que em El-Rei D. João o 4.° se achem estes e aqueles sinais individuantes, eu o provo evidentemente com uma indução geral, em que irei discorrendo por todos.

Bandarra diz que este rei é semente D'el-Rei Fernando: El-Rei D. João é semente D'el-Rei Fernando, como fica dito. Bandarra diz que este rei é rei novo: El-Rei D. João é rei novo, porque dantes nunca o havia sido. Bandarra diz que este rei há de ser levantado no ano de quarenta: El-Rei D. João foi levantado no ano de quarenta. Bandarra diz que este rei é feliz, e bem andante: El-Rei D. João em todo o seu reinado foi felicíssimo. Bandarra diz que o nome deste rei é D. João: El-Rei D. João, antes e depois, sempre teve o mesmo nome. Bandarra diz que por este rei se declarariam logo as conquistas, e estariam firmes por ele: El-Rei D. João logo foi aclamado e reconhecido por rei nas conquistas, e todas perseveraram na mesma fidelidade. Bandarra diz que ele levantaria suas bandeiras, e faria guerra a Castela: El-Rei D. João dezesseis anos que governou sempre fez guerra aos castelhanos. Bandarra diz que este rei é mais excelente: El-Rei D. João teve muitas excelências, além dele só ser excelência, enquanto duque de Bragança.

Bandarra diz que este rei não é de casta goleima: El-Rei D. João não é de casta goleima, como já explicamos. Bandarra diz que este rei é primo e parente de reis: El-Rei D. João é primo, e não mais que primo de três reis da Europa, e parente dos mais. Bandarra diz que este rei vem de mui alta semente: El-Rei D. João vem dos reis de Portugal, cujo título é mui alto e muito poderoso. Bandarra diz que este rei descende dos reis do Levante até o Poente: El-Rei D. João descende dos reis de Portugal, Aragão e Castela, que são reis do Poente, e dos reis de Nápoles, e Sicília, que são reis do Levante. Bandarra diz que este rei tem um irmão bom capitão: El-Rei D. João é irmão do Infante D. Duarte, tão bom capitão como sabemos. Bandarra diz que este rei ou este monarca é das terras da comarca, porque é natural de Vila Viçosa. Bandarra diz que este rei é guardador da lei, e que da justiça se preza: El-Rei D. João de nenhuma coisa se prezava mais que da justiça, e esta só deixou encomendada em seu testamento a el-rei que Deus guarde. Bandarra diz que este rei até certo tempo não há de ser recebido pelo papa: El-Rei D. João nenhum dos três pontífices até o tempo de seu falecimento o recebeu. Bandarra diz ou supõe que este rei, nem todos os que o aclamaram com a boca o haviam de seguir com o coração: El-Rei D. João é certo que o não seguiram com o coração, ao menos aqueles a quem ele mandou tirar as cabeças. Bandarra, finalmente, diz que este rei fez Deus todo perfeito, e que não acha nele nenhum senão, e quem pode duvidar que depois de ressuscitado El-Rei D. João, que há de ser um varão perfeito, e que mostre bem ser feito e perfeito por Deus, quanto mais que homem sem nenhum senão, não pode ser homem deste mundo senão do outro. Da mesma maneira diz Bandarra, que é um homem rei encoberto, porque em El-Rei D. João tem Deus depositado em grau eminente muitas partes e qualidades de bom rei encobertas até agora, e depois se descobrirão. Uma parte que desejava El-Rei D. João para o tempo em que Deus o fez, era ser muito guerreiro, e inclinado às armas. Este espírito guerreiro e militar, se descobrirá em el-rei com notáveis maravilhas na guerra do turco, quando o mundo, depois de fugidos e desbaratados seus exércitos, o vir rendido aos pés D'el-Rei D. João, e ferido por sua própria espada: esta é a energia com que Bandarra diz:

Demonstra que vai ferido
Desse bom rei encoberto.

Mostrando encoberta nele esta parte que parece lhe faltava para bom rei. O quanto estava encoberto naquele sujeito D'el-Rei D. João! Estava el-rei em si mesmo encoberto de alguns acidentes de rei, em que mais se reparava era em uma cobertura (disfarce natural) com que Deus tinha encoberto nele, o que por ele queria obrar, para que sejam mais maravilhosas suas maravilhas.

Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim as que contêm os sucessos já passados, como as que prometem os futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas que aqui fielmente temos referido, as quais todas são tão próprias da pessoa D'el-Rei D. João o 4.°, e lhe quadram todas tão naturalmente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante dos olhos, e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o retratava. Com que fica evidentemente mostrado e demonstrado, que o Senhor Rei D. João o 4.° que está na sepultura, é o rei fatal, de que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se cumpriram, como das que hão de suceder ainda. E este mesmo rei está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade, senão razão e obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar.

O contrário será sermos néscios, como Santo Agostinho chamava aos que tendo visto cumprida uma parte das profecias, não crêem a outra. Pesa-me não poder citar as palavras do santo, que são excelentes, considerem agora os incrédulos (se ainda os há), quantos homens têm ressuscitado, não só cristãos, mas gentios, para fins mui diferente. S. Francisco Xavier quase em nossos dias ressuscitou vinte e cinco. Pois se Deus em todas as idades, e em esta nossa ressuscitou tantos homens ainda gentios, e para fins particulares; para um fim tão alto e tão extraordinário, tão universal, e o maior que nunca viu o mundo, como é a recuperação da Terra Santa e destruição do turco, e a conversão de toda a gentilidade e judaísmo, como não ressuscitará um homem cristão, pio, e religioso, e que sendo rei soubesse ser humilde, que é a qualidade que Deus mais que todas busca nos que quer fazer instrumento de suas maravilhas, sem reparar em outras imperfeições e fraquezas humanas, como se viu em Davi. Ressuscitará El-Rei D. João, a sua ressurreição será o meio mais fácil de conciliar o respeito da obediência de todas as nações da Europa, que o hão de seguir a militar debaixo das suas bandeiras nesta empresa, o que de nenhum modo fariam, sendo tão orgulhosas e altivas, se não forem obrigadas deste sinal do Céu, entendendo todos que não obedecem ao rei de Portugal, senão a um capitão de Deus.

Allá verrá de Lixbona
Una illustre persona,
Cuja fama já resona
Por toda a parte y lado
En el mundo dará grã brado

Diz Solutivo, profetizando o remédio com que Deus há de acudir de Lisboa a Roma destruída pelo turco. E que brado é este que então há de soar no mundo todo, senão dizer-se que ressuscitou o rei dos portugueses? A este brado, como lhe chama também Bandarra, acudirá todo o mundo a ver e admirar, e a seguir o ressuscitado e milagroso rei: este estupendo prodígio visto com os olhos, será o que abrirá a porta à fé e à exclusão de todos os outros.

Contra todo este discurso resta só uma objeção, a qual ao entendimento pode fazer grão peso; e é esta: Se o principal e total assunto do Bandarra, e o seu tema ou teima, como ele diz, é profetizar os sucessos prodigiosos D'el-Rei D. João, e entre todos estes sucessos e prodígios, o que parece maior e mais incrível de todos é o haver de ressuscitar el-rei, por que não falou Bandarra nesta sua ressurreição? Respondo e digo, que sim falou nela pelos termos mais próprios e mais ordinários com que os profetas costumam falar nesta matéria. Chamar-se à morte sonho, e o ressuscitar acordar, é frase tão ordinária nos profetas, que não é necessário citar lugares. Davi, profetizando a morte de Cristo, diz que dormiu: Suporatus sum et ex surrexi. E o mesmo Cristo, profetizando a ressurreição de Lázaro, usou dos mesmos termos: Lazarus amicus noster dormit vadem ut a somno exitum eum. Fala Bandarra da ressurreição D'el-Rei D. João, e diz assim:

Já o tempo desejado
É chegado,
Segundo o Primal assenta,
Já se passam os quarenta,
Que se ementa,
Por um doutor já passado;
O rei novo é chegado,
Já dá brado,
Já arressoa o seu pregão,
Já Levi lhe dá a mão,
Contra Siquém desmandado,
E segundo tenho ouvido,
E bem sabido,
Agora se cumprirá,
A desonra de Dina
Se vingará,
Como está prometido.

Os sete versos primeiros desta copla, são tão parecidos com os outros sete em que refere a aclamação deste rei, que se acham em muitos exemplares, e em alguns riscados, e em outros  faltam, cuidando-se que eram os mesmos. Assim o suspeitava eu; tenho combinado alguns dos ditos exemplares, e, finalmente, o vim a averiguar em um cartapácio mui antigo do doutor Diogo Marchão, a quem comuniquei este pensamento no ano de 1643, e para experiência tirou ele da sua livraria o cartapácio que digo, e achamos que estavam nele ambas estas coplas, e estas segundas tinham uma risca. Da combinação destas duas coplas, e da semelhança e diferença delas, se vê claramente em como El-Rei D. João há de ter duas vidas, e sucessores mui diferentes em cada uma delas. Em ambas estas duas coplas diz Bandarra já o tempo desejado é chegado, porque havia de haver dois tempos desejados: o primeiro tempo desejado foi o da restauração do reino; o segundo tempo desejado é o em que estamos hoje, em que todos desejam e esperam rei prodigioso, posto com diferentes esperanças. A primeira copla diz já chegam os quarenta, e a segunda diz já se passam os quarenta, porque o termo da primeira copla havia de ser no ano de quarenta, e o termo da segunda havia de ser depois do tempo passado. A primeira copla diz o rei novo é alevantado, e a segunda diz o rei novo é acordado, porque o reino novo que no ano de quarenta foi levantado, esse mesmo rei novo depois de passado há de acordar do sono em que dorme, isto é, há de ser ressuscitado. Em ambas estas coplas diz já dá brado, porque o mesmo rei novo há de dar dois brados, um brado grande na sua aclamação, e outro brado maior na sua ressurreição: são as mesmas palavras de Solutivo: nel mundo darà gram grito: a primeira copla dizia já assoma a sua bandeira contra a gripla parideira, a segunda diz já arressoa o seu pregão, já Levi lhe dá a mão contra Siquém desmandado; porque à aclamação do rei novo seguiram-se as guerras de Castela, e neste tempo o não havia de receber o papa; e à ressurreição do rei novo, hão-se de seguir as guerras do turco, e então o há de receber o papa, e não lhe há de dar o pé, senão a mão.

Onde se deve notar a propriedade da história e aplicação de um homem idiota, que bem mostra ser guiado pelo espírito divino.
O príncipe Siquém, gentio, desonrou a Dina filha de Jacó, e para vingança desta afronta se ajuntaram os dois irmãos de Dina, Levi e Simeão, e mataram e destruíram a Siquém com todos os seus. Aplica agora Bandarra esta história passada ao sucesso futuro com extremada acomodação, porque Siquém é o turco, e Dina a Igreja; Levi o papa, e Simeão el-rei, e assim como Levi se uniu com Simeão para desafrontar a Dina da injúria que lhe fez Siquém, assim el-rei se há de unir com o papa para desafrontar a Igreja das injúrias que lhe fará o turco, e isto diz Bandarra mesmo nas suas respostas quando diz:

O que minha conta soma
O texto se há de cumprir
Primeiro, senhor, em Roma.

Primeiro há de vir o turco a Itália e Roma, e então há de ressuscitar el-rei: e em outro lugar fala o mesmo Bandarra na ressurreição d'el-rei, debaixo da mesma metáfora de acordado, com as mesmas circunstâncias do turco, e diz assim nas trovas antes dos sonhos:

Já o leão é desperto
Mui alerto,
Já acordou, anda caminho,
Tirará cedo do ninho
O porco, e é mui certo.

De maneira que quando el-rei, que é o leão, despertar, que é ressuscitar, será depois que o porco, que é o turco, vier fazer o ninho nas terras dos cristãos; e diz que o tirará cedo do ninho, porque a guerra será muito breve, e não como as dilatadíssimas em que se for conquistar a Terra Santa: e porque este efeito, e esta presa parecia dificultosa e admirável, acrescenta: porque ninguém duvide (e é mui certo), e assim em dois lugares diz Bandarra que o novo rei ressuscitará debaixo da metáfora de acordado: Já o leão é desperto mui alerto, já acordou etc.

Em ambos estes lugares diz, acordará e ressuscitará para ir fazer guerra ao turco, e vencê-lo, e deste efeito se colhe com evidência que acordar significa ressuscitar, porque el-rei novo morto, como ao presente está, não pode acordar, senão ressuscitando. Em outros dois lugares com a mesma clareza (posto que também metafóricos) acho profetizada no Bandarra a ressurreição d'el-rei; e ressuscitar nas escrituras explica-se pela palavra erguer-se: deste termo usou o anjo quando anunciou a ressurreição de Cristo: surrexit non est hic: do mesmo termo usou Cristo quando ressuscitou o filho da viúva: Adolescens tibi dua surge. Do mesmo modo usou Davi profetizando a ressurreição do mesmo Cristo: Surge Domine in requiem tuam. Porque assim como jazer significa estar sepultado, por onde escrevem as sepulturas: Aqui jaz Fuão; assim levantar-se e erguer-se significa ressuscitar, e por este modo diz Bandarra em dois grandes textos que ressuscitará El-Rei D. João: o primeiro texto nas trovas antes dos sonhos:

Um grão leão se erguerá,
E dará grandes bramidos,
Seus brados serão ouvidos,
E a todos assombrará.

O segundo texto nas trovas antes do fim:

Vejo erguer-se um grão rei
Todo bem-aventurado,
Que será tão prosperado,
Que defenderá a grei.

Onde se deve notar que da conseqüência destes mesmos textos colhe-se claramente, que em ambos o erguer significa ressuscitar porque em ambos se segue o erguer. No primeiro texto diz que se erguerá, e que assombrará a todos, porque não haverá coisa que mais assombre o mundo que el-rei de Portugal depois de tantos anos morto, ressuscitado: e logo continua os versos seguintes, dizendo o que há de fazer contra o turco, e como há de entrar na terra da promissão, que é o principal fim para que Deus há de ressuscitar el-rei. No segundo texto sobre dizer que se há de erguer todo bem-aventurado, que é qualidade própria de um homem, diz que se há de erguer para defender a grei, que é o rebanho de Cristo a quem o rei ressuscitado irá acudir e defender contra os lobos, que, como fica dito pelo mesmo Bandarra, estarão despedaçando em Roma e em Itália o mesmo rebanho. Assim que, em quatro lugares diz Bandarra expressamente pelos mesmos termos com que costumam falar os profetas, e pelos mesmos com que profetizou Davi a ressurreição de Cristo, que El-Rei D. João há de ressuscitar.

Neste mesmo sentido, e com a mesma clareza falou S. Metódio cujas palavras andam muito viciadas nos cartapácios dos sebastianistas. Eu as li na Biblioteca antiga dos Santos Padres que está na livraria do colégio de Santo Antão, e são desta maneira: Ex pergisetur tamquam a somno vini quem putabunt homines quasi inutilem esse. Fala o santo de um príncipe que em tempos futuros há de vencer e desbaratar o império do turco, e diz que acordará como do sono do vinho aquele que cuidavam os homens, que como morto era já inútil. Em dizer que acordará como do sono do vinho, quer significar o valor e esforço indômito, a pressa, a resolução e atividade extraordinária com que el-rei depois de ressuscitado se aplicará às armas, aos aprestos e guerras, e sobretudo à execução da vingança contra seus inimigos e de Cristo, tal que pareça furor, bem assim como escreveu Davi a Cristo na dita ressurreição vitorioso contra a morte e inferno, e neste sentido, finalmente, acabará de ficar entendida a profecia tão celebrada de Santo Isidoro, que tão trazida e tão violentada anda em tantos escritos: Erit rex sii pietatis . D. João o quarto já Deus no-lo há de tomar a dar outra vez, e então será duas vezes piedosamente dado: uma de sua restituição ao reino, outra de sua restituição à vida; uma quando aclamado, outra quando ressuscitado, e porque não pareça que sou singular nesta interpretação do Bandarra quero alegar neste ponto os mesmos que roubando-lhes as suas verdades se acreditaram e tomaram nomes de profetas com elas. O padre Bento nas suas profecias:

E pero viviendo verá
Quien vivier um grão leão
Muerto resuscitará

E o Cartuxo nas suas:

Veo entrar una dama
Com armas en el consejo
Y que resucita el vieyo
Debaxo de la campana
Com su barba larga y cana

De modo que estes dois autores tão guardados nos arquivos da antiguidade, ou falassem por espírito próprio ou interpretando (como eu mais creio) a Bandarra, ambos profetizaram que o rei fatal cuja monarquia se espera antes que obrasse os efeitos prodigiosos pelos quais há de subir a dita monarquia, havia de morrer e ressuscitar.

E porque não passe sem explicação a copla passada do Cartuxo, que tem coisas dignas de comento: bem pode ser que será tal o aperto de Portugal, ou da cristandade, que obrigue ao real e varonil espírito da rainha nossa senhora a entrar em conselho com armas. E ressuscitar el-rei debaxo de la campana, bem o explica a igreja de S. Vicente de Fora, onde está depositado; e estar tão perto do Santíssimo Sacramento, quod est semen resurrectionis, não carece de mistério. No epíteto de velho, e na barba larga e cana é que se pode reparar mais; mas el-rei já não é moço, e em respeito do rei novo que hoje temos é velho, e que os cabelos embranquecem na sepultura, pelos meus que sou quatro anos mais moço, digo que pode el-rei ressuscitar com barbas brancas e muito brancas. Mas contudo a mim me parece que esta barba é postiça, e que, profético, o poeta pinta a ressurreição do nosso rei com os olhos na idade D'el-Rei D. Sebastião por quem esperava; e quem pintou a ressurreição de um e a barba do outro, não é muito que lhe saísse o retrato menos ajustado nesta parte.

E já que falamos ou tocamos nestas velhices que tanto duram, só digo a vossa senhoria que o Bandarra não falou uma só palavra em El-Rei D. Sebastião, antes todas as suas desfazem esta esperança; porque o rei que descreve é todo composto de propriedades contrárias que implicam totalmente com El-Rei D. Sebastião, e senão façamos outra individuação às avessas da passada.

El-rei de que tratamos chama-lhe Bandarra, rei novo: El-Rei D. Sebastião é rei tão velho que nascido de três anos começou a ser rei. Diz Bandarra que o seu nome é João. El-Rei D. Sebastião tem outro nome muito diferente. Este rei chama-lhe Bandarra infante: El-Rei D. Sebastião nunca foi infante, porque nasceu príncipe. Este rei diz Bandarra que é bem andante e feliz: El-Rei D. Sebastião infelicíssimo, e a causa de todas as nossas infelicidades. A este diz Bandarra saia, saia: a El-Rei D. Sebastião dizia todo o povo e reino não saia, não saia. Este rei diz Bandarra que não é de casta goleima ou da casa de Áustria: El-Rei D. Sebastião tinha todo o sangue de Carlos V. Este rei diz Bandarra que é só primo e parente de reis: El-Rei D. Sebastião era neto de reis por seus pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz Bandarra, que tem um irmão bom capitão: El-Rei D. Sebastião nem teve, e não pode ter irmão; porque nem o Príncipe D. João, seu pai, nem a Princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro filho. Este diz Bandarra que é das terras da comarca: El-Rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia de ter guerra com Castela no princípio do seu reinado: El-Rei D. Sebastião nunca teve guerra com Castela. Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: El-Rei D. Sebastião prezava-se das forças e valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de dar a mão os pontífices. El-Rei D. Sebastião teve grandes favores dos pontífices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei diz Bandarra que lhe não achou nenhum senão: El-Rei D. Sebastião se não fora a África não nos perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não cansemos mais em prova de coisa tão clara, tirado somente ser El-Rei D. Sebastião semente D'el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa diz Bandarra em todos os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam acomodar, nem de muito longe a El-Rei D. Sebastião.

As outras que os sebastianistas chamam profecias, são papéis fingidos e modernos, feitos ao som do tempo, e desfeitos pelo mesmo tempo, que em tudo tem mostrado o contrário; até aquele texto tão celebrado cujus numen quinque apicibus ne tatum est, que os mesmos sebastianistas aplicam ao nome de Sebastianus, composto de cinco silabas; tão fora está de ser em favor de suas esperanças, que é uma milagrosa confirmação da nossa. Ápices propriamente não são sílabas, nem letras, senão os pontinhos que se põem sobre a letra i. Assim o diz o texto: Ista onum aut unus aero. E qual seja o nome que tenha cinco ápices, ou cinco pontinhos sobre a letra i o nome seguinte o dirá: Joannes IV - iiii, e não digo mais.

Mas estou vendo que tem mão em mim vossa senhoria, e quem diz: Dic nobis quando haec erunt: respondo primeiramente: non est nostrum nosse tempora vel momenta quae pater posuit insule potestate: mas porque esta resposta é muito desconsolada, direi o que minha conjetura tem alcançado ou imaginado. Tenho para mim que dentro na era de sessenta se há de representar no teatro do mundo esta tragédia. Fundo-me em cinco textos de Bandarra, três mui claros, e dois mais escuros, mas muito notáveis.

No sonho 3, falando Bandarra das profecias de Esequiel e das hebdômadas de Daniel, diz assim:

Achei no seu cantar,
Segundo o que representa,
E assim Gar, como Agar
Que tudo se há de acabar,
Dizendo cerra os setenta

Gar, que são os judeus, e Agar que são os agarenos, ou turcos, se hão de acabar as suas seitas, quando se cerrar o ano de setenta que é o fim de toda a comédia; segue-se logo que as jornadas, desta comédia se hão de ir representando pelos anos de sessenta. O mesmo confirma Bandarra nas suas respostas falando nas mesmas profecias onde diz:

E depois delas entrarem
Tudo será já sabido,
Aqueles que aos seis chegarem
Terão quanto desejarem,
E um só Deus será conhecido.

Chama Bandarra a esta era a era dos seis por entrarem nela duas vezes seis 660 e na era de 666 por entrarem nela três vezes seis, número muito notável e muito notado no Apocalipse.

E sem dúvida que é muito o que está para ver nestes seis, pois diz Bandarra que os que a eles chegarem terão quanto desejarem.

E nestes seis
Vereis coisas de espantar.

E logo abaixo repete o mesmo:

Desde seis até setenta
Que se ementa
Do rei que irá livrar.

Assim que, todos estes três ou quatro lugares do Bandarra mostram que na era de 660 é o prazo determinado para o cumprimento das suas profecias, e dos prodígios prometidos nelas; e se alguém disser que este número de seis ou de 660 pode ser de outro século e não deste, respondo que não pode ser porque já temos por fiador o ano de quarenta, que evidentemente foi deste século, e não de outro, e sobre este ano de quarenta é que vai Bandarra assentando suas contas: uma vez diz antes que cheguem quarenta, outra vez diz já se chegam os quarenta; e sobre estes quarenta fala depois nos de sessenta e setenta.

Dos outros dois textos que tenho prometido será ainda para maior confirmação esta conjetura. Chamei-lhes textos escuros, e também lhes pudera chamar tristes. No primeiro texto das trovas do fim diz Bandarra assim:

Vejo quarenta e um ano
Pelo correr do cometa
Pelo ferir do planeta
Que demonstra sem grão dano.

No ano de 618 apareceu em todo o mundo o último e famosíssimo cometa que viu a nossa idade, e a figura era de uma perfeitíssima palma, e a cor acesa, a grandeza como a sexta parte de todo o Hemisfério; o sítio no Oriente, o curso sempre diante do Sol, a duração por coisa de duas horas. Eu o vi na Bahia, e vossa senhoria o devia ver. De então para cá não houve outro cometa, ao menos notável. Fala dele Causino no seu livro De regno et domo em três partes, atribuindo-lhe os efeitos, principalmente em Espanha.

Deste cometa, que por antonomásia foi o cometa destas idades, entendo que fala Bandarra dele, pois foi o cometa do século de suas profecias. E fazendo eu o cômputo dos anos pelo ferir do mesmo cometa, vem a fazer quarenta e um anos, do fim em que estamos, ou no princípio do que vem, porque o cometa, como fica dito, e como eu estou lembrado muito bem, apareceu no ano de 1618, como observa Causino; o dia em que apareceu foi em 17 de novembro, e o dia em que totalmente desapareceu, foi aos 14 ou 15 de janeiro, porque já então se enxergava mal.

Se fizermos pois a conta do dia em que apareceu o cometa, fecham-se os quarenta e um anos em 17 de novembro deste ano de 659, e se a fizermos do dia em que desapareceu, fecham-se os quarenta e um em 14 de janeiro do ano de 660, o qual ano diz Bandarra que demonstra ser grão dano, porque os princípios desta notável representação, é certo que hão de ser trágicos e funestos, como as vésperas vão mostrando, e em tudo se confirma o segundo texto com o primeiro, senão é que a escuridade do cômputo é nele mais escura:

Trinta e dois anos e meio
Haverá sinais na Terra,
A escritura não erra,
Que aqui faz o conto cheio
Um dos três que vem a reio,
Demonstra grande perigo,
Haverá açoite e castigo
Em gente que não nomeio.

Para inteligência, suponho que contos cheios são números perfeitos que acabam em dez, como são 30, 40, 50, 60, 70; contos não cheios são os que não chegam a aperfeiçoar este número de dez, como são, 31, 42, 53, 64. Suposto isto, os primeiros quatro versos falam na aclamação deste rei, a qual sucedeu no conto cheio de quarenta, tão celebrado do Bandarra, tendo decorrido primeiro desde a morte do último rei português, trinta e dois anos e meio, isto há sessenta e um anos. E tantos anos pontualmente passaram desde a morte do último rei de Portugal D. Henrique, que morreu em janeiro do ano de 1580, até à aclamação D'el-Rei D. João o 4.°, que foi o primeiro de dezembro de 1640. Até aqui corre facilmente a explicação desta copla, a dificuldade está nos versos que se seguem:

Um dos três que vem a reio
Demonstra grande perigo, etc.

E porque há já muito tempo que passaram os três anos que vem a reio depois do conto cheio do ano de quarenta, e não vimos esses perigos, nem esses açoites, nem esses castigos, digo que um dos três que vem a reio, não significa um destes anos, como se cuidava, senão um dos três contos cheios, que é o que fica imediatamente atrás, os quais contos cheios depois do ano de quarenta, são o ano de cinqüenta, e o ano de sessenta, e o ano de setenta; e um destes três contos cheios é o que mostra grandes perigos. Resta agora saber qual dos três anos será. Quanto eu posso alcançar, tenho para mim que é o ano que vem de sessenta. Provo: estes três contos cheios, são o ano de 50, o ano de 60, o ano de 70. 0 ano de 50, não é, porque já passou: o ano de 70, não pode ser, porque então, como fica dito, se há de acabar tudo: logo sem dúvida é o ano de sessenta.

Neste ano haverá açoite e castigo (em gente que não nomeia Bandarra, entendo que por reverência do estado eclesiástico), haverá açoite e castigo em Portugal. E posto que todos devem tomar estes castigos e açoites, como da mão de quem os dá, e procura aplacar sua divina justiça, tão merecidamente provocada; saibam porém os portugueses, e não se desanimem do trabalho por grande que seja, que o mesmo Deus que os castiga, os ama, antes porque os ama, os castiga, e depois de castigados e purificados com a tribulação, os há de fazer raros e escolhidos de sua glória. Fora de Espanha veremos que Portugal prevalece, e Castela acaba. Bandarra nas trovas do fim:

Vejo um grão rei humano
Alevantar sua bandeira,
Vejo como por peneira
A grifa morrer no cano.

No efeito dos sucessos é certo que me não engano; no cômputo do tempo, de que não tenho tanta segurança, também presumo que me não hei de enganar. E se assim foi aparelhe-se o mundo para ver nestes dez anos uma representação dos casos maiores e mais prodigiosos que desde seu princípio até hoje tem visto. Em Espanha verá a el-rei de Portugal ressuscitado, e Castela vencida e dominada pelos portugueses. Em Itália verá o turco bastantemente vitorioso, e depois desbaratado e posto em fugida. Em Europa verá a universal suspensão das armas entre todos os príncipes cristãos, e não cristãos, verá ferver o mar e a terra em armas contra o inimigo comum. Na África, e na Ásia, e em parte na mesma Europa, verá o império otomano acabado, e el-rei de Portugal aclamado imperador de Constantinopla. Finalmente, com a sombra de todas as gentes verá aparecidos de repente as dez tribos de Israel, que há dois mil anos que desapareceram, reconhecendo por seu Deus e seu Senhor a Jesus Cristo, em cuja morte não tiveram parte.

Esta é a prodigiosa trágico-comédia, a que convida Bandarra nestes dez anos a todo o mundo. Mas saibamos os que vivemos, e saibam os que viverem, que na primeira cena desta primeira representação, nadará todo o teatro em sangue, no qual ficará afogado o mesmo mundo, porque há de chegar até cobrir a cabeça. E com isto, padre e senhor meu, me haja vossa senhoria por desempenhado da maior clareza que deseja, pois se não pode falar mais claro. E eu também me hei por despedido do meu profeta, que em traje tão peregrino parte do Maranhão para Lisboa, levando por favor da sua fortuna, a sua mesma verdade. Assim diz ele no prólogo de sua sapataria, de que são todos os versos com que quero acabar:

Sempre ando ocupado
Por fazer minha obra boa,
Se eu vivera em Lisboa
Eu fora mais estimado.

Estimado será porque promete ser bem recebido de muitos senhores, posto que não de todos, que nem os seus louvores são para todos:

Sairão do meu coser
Tantas obras de lavores,
Que folguem muitos senhores
De as calçar e trazer,
E quero entremeter
Laços em obra grosseira,
Quem tiver boa maneira
Folgará muito de a ver.

Conhece que haverá quem goste, e quem não goste destes versos grosseiros, mas também diz que uns e outros trazem a causa consigo, os que entendem gostarão, os que não entendem não poderão gostar:

Minha obra é mui segura
Porque a mais é de correia,
Se a alguém parecer feia
Não entende de costura;
Sei medir, e sei talhar,
Sem que vos assim pareça,
Tudo tenho na cabeça,
Se o eu quiser usar;
E quem o quiser gozar,
Olhe bem a minha obra,
Achará que inda me sobra,
Dois cabos para ajuntar,
Contente sou, e pagado
De lançar um só remendo,
Inda que estem remoendo
Não me toquem no calçado.

Finalmente, supõe Bandarra que há de haver glosadores ao seu texto, e eu suponho que haverá muitos mais à minha glosa, mas nem por isso direi o que ele diz:

Inda que estem remoendo, etc.

Só digo que sobre ter dito tanto, ainda é muito o que calo.

Tudo aprendi do mesmo mestre, quando não duvidou dizer de si:

Sei medir, e sei talhar, etc.

Guarde Deus a vossa senhoria muitos anos, como desejo, e como estas cristandades hão de mister. Camutá do Rio das Amazonas 29 de abril de 1659 anos.

O padre
Antônio Vieira
Da Companhia de Jesus





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Um comentário:

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    Comentário Único - demais descrições, na pág. devida - Clavis Prophetarum
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    Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.

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