domingo, 15 de setembro de 2013

Profecia - Livro I

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
De Profecia e Inquisição, do Padre Antônio Vieira.

Edição de referência: Antônio Vieira. De Profecia e Inquisição. Brasília, Senado Federal, 2001.


ÍNDICE


De Profecia

II
III
IV

De Inquisição

V
VI
VII








I
Defesa do livro intitulado QUINTO IMPÉRIO, que é a apologia do livro CLAVIS PROPHETARUM, e respostas das proposições censuradas pelos senhores inquisidores: dadas pelo Padre Antônio Vieira, estando recluso nos cárceres do Santo Ofício e Coimbra
                                                       

Sendo ontem chamado à mesa, me foi dito que estavam nela os senhores inquisidores para sentenciarem a minha causa, e que antes disso queriam ouvir de mim tudo o que tivesse que dizer ou alegar para bem dela; e porque a última doença (de que estou mal convalescido) me não deixou com forças nem alento para poder falar em público, pedi licença para falar por papel, que me foi concedida. Protesto pois do modo que me é possível, diante desses senhores, que antes de se me dar a notícia que as minhas proposições estavam censuradas, e as censuras aprovadas por sua santidade, fazia eu tenção de propor em presença de vossas senhorias todos os pontos ou questões delas, dando os fundamentos das opiniões que segui, ou determinava seguir, respondendo aos das contraditas; mas depois que me foi dada a notícia da aprovação e autoridade do sumo pontífice, que é argumento a que a minha fé, resignação e obediência, não sabe outra solução senão a da veneração, obséquio e silêncio, sem que para isso seja necessário cativar ou fazer força ao entendimento, que sempre está e esteve sujeito aos menores acenos da Igreja, e de qualquer de seus ministros, havendo por esta via cessado o escrúpulo que só me dilatava; e tendo eu aceitado, sem mais demora da razão, ou explicação das ditas proposições, a todas as censuras delas, e suas dependências, nenhuma outra coisa se me oferece, que possa fazer ou dizer importante ao bem da minha causa, mais que o representá-la a vossas senhorias em um menor e mais abreviado processo, no qual a possa compreender toda junta de uma vez, dividindo-a para isso em partes certas e determinadas, onde se veja brevemente o dilatado, distintamente o confuso, e claramente o escuro e mal declarado por mim: e pois não posso fazer a dita representação com razões vivas (como muito desejava) falarão por mim estas poucas regras, não como nova alegação, pois não digo nelas coisa de novo, mas como um breve memorial deste processo, repartido, para maior facilidade, clareza, e distinção, nas oito ponderações seguintes:

PONDERAÇÃO l.a
ACERCA DO ASSUNTO DO LIVRO

O argumento ou assunto do livro que quis há muitos anos escrever, e do qual tinha totalmente desistido, depois que me apliquei às missões, era o Império Consumado de Cristo debaixo do nome de Quinto Império: digo - Império - conforme o cômputo dos impérios de Daniel, entendendo-se por império consumado de Cristo, não algum império que Cristo havia de ter nos tempos futuros, senão um novo e maior estado do mesmo império e reino que Cristo hoje tem, e teve sempre depois que veio ao mundo, que vem a ser por outros termos, um novo e perfeito estado da Igreja Católica, que é o único e verdadeiro reino de Cristo. .. [* coment. post 7 Divisões]

As partes, circunstâncias, e felicidades de que se compõe esse novo e mais perfeito império ou estado, eram a extirpação de todas as seitas de infiéis, a conversão de todas as gentes, a reforma da cristandade, e a paz geral entre os príncipes, a mais abundante graça do Céu, com que salvariam pela maior parte os homens, e se encheria o número dos predestinados, sendo os instrumentos imediatos da dita conversão um sumo pontífice santíssimo, e alguns varões apostólicos de singular espírito, que, divididos por todas as terras de infiéis, as reduziriam e sujeitariam à Igreja, e um imperador zelosíssimo da propagação da fé, o qual empregaria toda a sua autoridade em serviço do dito pontífice, e favor dos pregadores, segurando-lhes o passo, e defendendo-os onde necessário fosse com as suas armas, e sujeitando com elas a todos os rebeldes, principalmente o império romano, com que o faria senhor do mundo.

Até aqui o assunto em geral, o qual de nenhum modo é invento meu, senão promessa e esperança, e exposição de muitos santos antigos e modernos, e de muitos comentadores das escrituras, e de muitas pessoas de espírito profético, geralmente aprovado e recebido, de que porei somente os nomes: S. Justino, e S. Gaudêncio, S. João Crisóstimo, S. Hilário, Osório, Uberto, Panônio, Eclio, Herculano, Pedro Bolorengo, Serafino de Berma, Genebrardo Talo, Pedro Galatino, Salazar, Serelego, Arrias Montano, Bandale, Joaquim Abade, Aperilas, S. Metódio, Teófilo Eremita, Malaquias, S. Francisco de Paula, S. Brízida, S. Amatildes, S. Isidoro, S. fr. Gil, o Beato Amadeu, S. Ângelo mártir, o irmão Mem Rodrigues da Companhia de Jesus, e outros muitos católicos pios, e, exceto o último, todos doutos.

E porque os sobreditos autores que falam no imperador que Deus há de dar à sua Igreja, para as execuções temporais desta espiritual conquista, não declaram absolutamente, que pessoa particular haja de ser, acrescentava eu, ou pretendia acrescentar, posto que digam muitas propriedades e circunstâncias, de que se pode conjecturar o argumento geral dos ditos autores à acomodação e explicação do reino, para que tinha Deus guardado aquela grande empresa e império, interpretando em honra danação, que seria rei português, e do reino de Portugal, fundando este pensamento principalmente nas palavras de Cristo a El-Rei D. Afonso Henriques - voto in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.

A este fim (o que muito se deve notar) determinava eu seguir ou supor duas opiniões necessárias ao dito intento, ambas comumente recebidas dos teólogos; a primeira, que o império de Cristo não só é espiritual, senão também temporal, cada um a respeito de seus vassalos, sendo este título ainda mais próprio no príncipe, que o fosse de todo o mundo, em suposição das quais duas opiniões, aplicando o sobredito império a um príncipe descendente D'el-Rei D. Afonso Henriques, se vinha a cumprir e verificar nele inteiramente toda a profecia das palavras e promessas de Deus, pois no tal príncipe estabelecia Cristo um império, o qual juntamente seria império de Cristo, e império dum descendente do mesmo D. Afonso Henriques, que é toda a energia - in te, et in semine tua - em seguimento desta aplicação, e descendo a individuar a pessoa deste príncipe, determinava eu chamar à pretensão do dito império todos os que descendem D'el-Rei D. Afonso Henriques, e principalmente por serem a sua décima sexta geração, ou descendentes dela, tinham conhecido direito à promessa de Cristo, como são ao presente o imperador da Alemanha, por filho da imperatriz D. Maria: El-Rei de França por filho da rainha D. Ana, ambas irmãs de Filipe IV de Castela, ou seu filho pela própria descendência.

Mas porque o meu intento total era concluir que este príncipe não só havia de ser descendente D'el-Rei D. Afonso Henriques, senão também rei português, e de Portugal, assentado neste princípio segundo, chamava da mesma maneira a pretensão aos reis portugueses, que parece podiam ter maior direito a ela, pondo em primeiro lugar a opinião comum D'el-Rei D. Sebastião, e todos os fundamentos que tinha, e no segundo a El-Rei D. João IV, pela estimação também comum com que na restauração do reino foi reputado pelo verdadeiro encoberto, satisfazendo ao fortíssimo argumento da sua morte, com exemplos e razões que mandei à rainha nossa senhora no papel deste assunto, por ser o que naquela ocasião podia servir de alivio de sua majestade, sendo porém certo que o meu intento não era resolver por último, que o Senhor Rei D. João fosse ou houvesse de ser o prometido imperador: assim o puderam testemunhar algumas mas pessoas dignas de toda a fé, a quem foi força comunicar o meu segredo e o meu pensamento, os quais sabem que verdade era dedicar eu este livro a El-Rei D. Afonso VI, que Deus guarde, e concluir por remate de tudo, haver sua majestade ser o futuro imperador, cm quem tivesse princípio o império prometido ao rei do mesmo nome, provando esta final resolução com a cláusula do mesmo juramento do rei, e promessa de Cristo - usque ad decimam sextam generationem in qua atenuabitur proles, et in ipsa sic atenuata respiciam, et videbo - nas quais palavras expendia ou havia de expender, que o relativo - in ipsa - não se referia à décima sexta geração, que foi El-Rei D. João IV, senão à prole da décima sexta geração, que é El-Rei D. Afonso.

Este é, senhores, em geral todo o argumento daquele assunto, esta em particular toda a aplicação, ou a acomodação dele, em que peço se ponderem quatro motivos, que não pouco demonstram a sinceridade e pureza da minha tenção:

1.° Quanto ao assunto em geral, se me não deve imputar culpa, pelo ter por católico e pio, e sem escrúpulo de perigosa doutrina, pois tem por si a autoridade e revelações de tantos santos, e de tantos e tão graves autores de nossos tempos, cujos livros, aprovados pelo Santo Ofício, correm sem reparo algum em toda a cristandade.

2.° Quanto à aplicação do dito assunto, e imperador dele, o rei de Portugal, que Rusticano (ita), um dos autores acima alegados, religioso de S. Francisco, em um livro que imprimiu em Veneza, aprovado pele Santo Ofício de sua santidade, com título de recopilação das profecias modernas, aplica o mesmo império a el-rei de França, o qual rei se vê estampado em muitas partes do mesmo livro: e pois é coisa lícita e aprova da pelo Santo Ofício, e maiores ministros da Igreja, o ser a mesma aplicação a um príncipe da cristandade, porque me não pareceria a mim também lícito aplicá-lo a outro, principalmente não havendo nenhum no mundo que tenha a seu favor um tão notável e autêntico testemunha como o do juramento D'el-Rei D. Afonso Henriques?

3.° Quanto ao dito assunto, e aplicação dele, se colhi manifestamente qual foi a tenção que tive em seguir a opinião comuníssima do mesmo temporal de Cristo por partes, se eu supusesse a opinião contrária, que admite em Cristo o império espiritual, quando viesse a dizer sobre a cláusula - inte - mihi - que o mesmo império de Cristo, e mais d'el-rei de Portugal, papa ou cabeça da Igreja; pois o império espiritual de Cristo não tem, nem pode ter outra cabeça senão o papa: sendo porém esta razão tão natural e manifesta, e sendo outrossim a eleição da dita opinião do império temporal de Cristo, forçosamente necessária para o dito assunto, bem se deixa ver quão alheio do meu sentir é o fundamento sobre que me foi argüida tanta máquina de suspeitas e erros, fundados todos na opinião do dito império temporal de Cristo, e quão impossível coisa parece, que a disposição de todo este meu fundamento, assim como estava truncada e imaginada, se houvesse de penetrar ou perceber antes de se declarar, donde nasceu interpretar-se o título de Quinto Império, como são também todas as conseqüências que dele se inferem.

4.° Que o dito chamado livro, verdadeiramente de nenhum modo é, nem foi, nem se pode chamar livro, senão pensamento de livro, e pensamento retratado, e totalmente deixado, por haver mais de onze anos que tinha desistido do sobredito pensamento: nem faz contra esta verdade, bem provada com o retiro do Maranhão, e com me haver aplicado à conversão das gentes, o intento que tinha de dedicar o dito livro a sua majestade, porque este pensamento era ex necessitate, et preter intentionem, depois que pelos cargos que se me deram no Santo Ofício fui obrigado a explicar o dito assunto, e o Quinto Império, e questões dele, para mostrar os fundamentos e motivos por que o tivera por provável e sã doutrina; e em disposição de me ser forçoso gastar o tempo neste estudo, faço conta de o não perder, e dedicar o dito livro a el-rei, no caso em que depois de representar nesta mesa todos os pontos principais, mas não reprovassem em coisa essencial que desfizesse o dito assunto. Assim que, quanto à minha tenção, nem por pensamento me passara fazer o dito livro, e só tratava de alimpar e imprimir os meus sermões, como o padre geral me tinha mandado.

PONDERAÇÃO 2.ª
ACERCA DOS PAPÉIS

Os papéis de que se tiraram as culpas de que fui argüido são quatro: o primeiro, é o papel do Maranhão, no qual se deve ponderar que todas as culpas que dele se formam se reduzem a um só ponto, que foi o ter o Bandarra por profeta, na qual suposição, que muito é que eu provasse o que ele expressamente diz, ou o que da suas trovas por boa conseqüência se segue. Os fundamentos por que tive para mim que fora profeta, e o pretendi privadamente provar naquele papel, são os que presentei na mesa expendidos em escritura; autoridades e razões especulativas e práticas, em que se seguia a opinião geral, do que por palavras e escritos impressos assim o julgam pregoavam, entendendo da mesma maneira, que assim como se pode provar que tal ação foi milagre, e que tal morte foi martírio, assim se pode provar que tal predição ou predições foram profecias, e assim como se pode inferir que o que faz tal ação é milagroso, e o que padece tal morte é mártir, assim se podia inferir, que o que disse tais predições era profeta; tendo para mim, finalmente, que os papéis o discursos em que as sobreditas coisas se provam, as podem provar comunicar seus autores privadamente, sem violar a proibição, ou incorrer penas dos que publicam ou divulgam semelhantes tratados; em próprios termos, é o que eu só fiz, remetendo o dito papel a um rainha, pelo modo e meio mais secreto que podia ser, que foi por mão de seu confessor: e se ele ou outrem o divulgou, parece se me não deve imputar essa culpa.

O segundo papel é o que enunciei ao conselho geral, pedindo restituição de tempo em que havia estado doente, e mudança de lugar por alguns dias, para convalescer da dita enfermidade, com ordenavam os médicos do Santo Ofício, sendo a mesma petição e submissão, com que nela tão miudamente fiz de mim atos mui formais da mesma obediência, reconhecimento, e respeito, e não podendo haver direito algum que presuma que quem pede favor e graça queira ofender ao juiz que o há de sentenciar ou absolver, sendo os juízes principalmente em sentença de que se não pode apelar; assim que, se no sobredito papel intervieram alguns erros ou defeitos, foi por não ser feito por letra minha, ou procurador versado (o que eu por esta mesma razão pedi) nos estilos do Santo Ofício, e por ser eu totalmente falto de semelhantes notícias, e por não serem exatas as que procurei do modo que me era possível, os quais defeitos e erros, finalmente, se purificaram no mesmo papel, com dizer que nas minhas propostas ou petições, pedia ou pretendia somente o que me fosse lícito, protestando e pedindo perdão de tudo, e de qualquer coisa em que pelas sobreditas causas houvesse errado, ou faltado ao que devia.

O terceiro papel foram os cadernos de apontamentos escritos pela razão que fica dita nesta mesa, para mostrar como obedeci e trabalhei, os quais eu de nenhum modo oferecerei em resposta ou defesa das proposições, ou proposição alguma, antes sendo-me ordenado que as deixasse, contra minha vontade e tenção o fiz, em pretexto (ita) de todo o sobredito, e de que eu não afirmava, nem sabia, o que nos ditos papéis estava escrito, porque não tivera tempo para os ler, e quando os escrevia, ainda não estava resoluto no que havia de dizer, ou de seguir, sendo somente lançados a pedaços naqueles cadernos, o que estudava ou me ocorria informe ou irresolutamente até a última eleição, assim como fazem todos os escritores de livros, os quais depois de toda esta matéria estudada e junta, e depois de mui ponderadas e examinadas as dificuldades, se resolvem no que absolutamente hão de dizer, e conforme a dita resolução, ou moderam, ou ampliam, ou mudam, prosseguem, ou tiram, ou acrescentam, e muitas vezes riscam e retratam as mesmas conclusões que determinavam seguia, não havendo coisa alguma tão exatamente escrita no primeiro correr da pena, que não tenha sempre que emendar; e tudo isto é o que havia e determinava fazer nos sobreditos cadernos, nos quais, como bem se vê, não há parte ou discurso algum que esteja concluído, havendo muitos riscados, e outros prosseguidos por diferentes modos e razões, para que depois se elegesse o mais conveniente. Assim que, nem os ditos discursos, nem as proposições, ou palavras deles, ou conseqüências algumas, se me devem imputar por culpas, por serem todas duvidosas, e indeterminadamente apontadas, e não absolutamente escritas, nem proferidas, antes da sinceridade e confiança com que pus na mão dos ministros do Santo Ofício todos os ditos papéis, sem emendar, nem ainda rever coisa alguma deles, se mostra claramente a pureza da fé, e verdade da tenção com que foram escritos, e entregues sem temor nem imaginação de receio, porque pudesse vir ao pensamento o que nunca tinha passado pelo meu.

O quarto e último papel é o que fiz depois da minha reclusão, de cujo princípio e fim largamente consta que nenhuma das coisas que nele escrevi foi a fim de as defender ou afirmar, senão de referir e representar a vossas senhorias os motivos e fundamentos que tivera para reputar por provável o que tinha escrito, ou determinava dizer ou escrever; e que haver-me enganado, como confessava, nas matérias das proposições censuradas, fora sem má tenção nem culpa Nos sermões impressos em Castela não falo, porque absolutamente aqueles papéis não são meus, senão de quem os quis imprimir debaixo do meu nome, para me afrontar, ou para ganhar dinheiro.

PONDERAÇÃO 3.ª
ACERCA DAS PROPOSIÇÕES

Antes de propor o que devia seguir, se pondere nas proposições (ita), referirei brevemente as ditas proposições:

1.ª Reprova-se o título de Quinto Império, por ser (como dizem) o dito império do Anticristo: e eu no dito acedi, ou segui a sentença ordinária dos teólogos e expositores que, no império das visões de Daniel, dizem que o Quinto Império é o império e reino de Cristo.

2.ª Reprova-se provar o império temporal de Cristo com alguns dos mesmos lugares, em que se prova o espiritual, e que isto se não pode fazer sem ser in sensu judaico, e contra Cristo. E este modo de provar é a prova ordinária de todos os teólogos que seguem a dita sentença, posto que não em todos os homens, que absolutamente falam do reino de Cristo, senão somente aqueles em que as palavras e circunstâncias do texto admitem ambos os sentidos, e ambos os reinos, como se pode ver nos ditos autores, e particularmente em Alonso de Mendonça, só sobre o texto do salmo 31 - dominabitur a mari usque ad mare.

3.ª Reprova-se dizer que o império de Cristo não é só espiritual, senão também temporal, e esta opinião é a mais comum, e dos maiores teólogos deste século, Soares, Vasques, Lugo, Molina, Salazar, Estudoro, Francisco de Mendonça, Alonso de Mendonça, Cabrera, e outros muitos et nobis; Sime Catena lhe chama - Communissimo, et verior.

4.ª Reprova-se a opinião que explica as visões do cap. 2.° e 7.° de Daniel do Reino de Cristo na Terra, ou terreno, em que se opõe ao celestial, posto que o mesmo reino de Cristo se há de continuar eternamente no Céu, como é dito, e na dita matéria segui a explicação comum de todos os expositores, e de quase todos os teólogos de um e outro; texto 61 - Replevit omnem terram, et subter omnem terram.

5.ª Reprova-se o afirmar que Cristo em este mundo exercitou alguns atos do dito domínio e jurisdição temporal. Esta é a opinião recebida de muitos autores.

6.ª Reprova-se a opinião do Quinto Império, e futuro estado consumado de Cristo, porque se poderiam queixar os passados também de não lograrem o dito estado; e ou se diga que Deus o não fez desde o princípio da Igreja, porque o não quis, ou porque o não pôde, sempre é impiedade: mas sem embargo destes argumentos, a dita opinião é de todos os autores, que são santos canonizados, e se é havê-lo Deus revelado assim, o qual Deus e Senhor Supremo é o que só sabe e pode saber os porquês da sua providência, sem por isso se poderem queixar dele os homens, como se não queixaram os cristãos das novas perseguições da Igreja, de não virem na idade doirada dela, como chamam os historiadores aos tempos de Constantino Magno: e posto que os japões se queixavam de que sendo Deus lhes mandasse tão tarde a luz, e conhecimento da sua fé, esta queixa era sem razão, como S. Francisco Xavier lhes mostrou, e se pode ver em Lucena.

7.ª Reprova-se dizer que neste tempo haverá um imperador cristão mui poderoso, que será como braço secular da Igreja para todas as execuções e assistências importantes à provação e estabelecimento do dito estado, porquanto o império e potência temporal anda sempre junta com a ambição, que é destruidora e não propagadora do reino de Cristo, e não pode Deus levantar ou dar império temporal a fim de converter e reformar o mundo; mas a esperança e promessa de haver o dito imperador é expressa profecia de S. Francisco de Paula, S. Brízida, S. Isidoro, de S. Metódio., de S. Gertrudes, de S. Ângelo, do Beato Amadeu, e outros santos, e recebida comumente de todos os autores que seguem a opinião do dito estado, os quais não têm por coisa nova, e muito menos alheia da Providência, haver um príncipe, ou muitos, em quem não ande junta ao império a ambição, senão a piedade e zelo da glória e serviço de Deus como Davi, Josias, Constantino, Carlos Magno, Luís, Estêvão, Casimiro Pelaio, e outros muitos em todos os reinos da cristandade; nem que este instrumento temporal na sua esfera seja desproporcionado para a conversão e reformação do mundo, antes muito eficaz para ajudar a promover a dita reforma e conversão, pois é certo - quia reges ad exemplum totus componitur orbis.

8.ª Reprova-se o ditame que admite o dito imperador como instrumento, ainda que imediato e remoto, da conversão, porquanto de qualquer modo que concorra para ela é fazer a potência temporal medida da salvação e graça divina, e a mesma graça conexa e dependente da dita potência, sobre ser o dito modo de converter alheio da doutrina de Cristo, e do exemplo dos apóstolos, os quais o mesmo Cristo mandou - sine baculo et sine pera - mas é certo que a dita opinião e ditame de seus autores não faz a potência temporal medida da graça, nem a graça dependente ou conexa com ela, e somente julga a dita potência por condescendente ou necessária, per accidens, não a graça, senão os meios dela e da fé. Esta é não só a sentença comum do padre Soares, e de todos os teólogos, senão a praxe recebida e usada hoje e aprovada pelos sumos pontífices na conversão das Índias, e assim como concorreu Carlos V e El-Rei D. Manuel e seus sucessores para a conversão delas, assim, diz esta opinião, concorrerá aquele imperador para a conversão do mundo.

9.ª Reprova-se o admitir que a dita conversão há de ser ou pode ser antes da vinda do Anticristo, e esta opinião é expressa de Herculano, Salazar e de Servelego, e de todos os santos antigos e modernos, que seguem a sentença do estado consumado do reino de Cristo, e supõe juntamente a tradição, de que entre o dito Anticristo e o dia do juízo não há de haver mais que cento e quarenta e cinco luas, reconhecendo os ditos autores, suposta esta tradição, se não podem de nenhum modo entender muitos lugares da escritura sagrada, senão admitindo a dita conversão antes, a qual a antecedia ou suponha problematicamente, mostrando como nesta opinião e na contrária se havia prosseguir o assunto e lugar e ordem da duração do mundo em que segundo cada uma das ditas proposições caía o estado consumado do reino de Cristo.

10.ª Reprova-se a opinião que entende da dita conversão as palavras - unum ovile, et unus pastor e sobre esta sentença de tantos e tão graves autores, como tenho alegado, as mesmas palavras parece que mostram não se entenderem somente de Cristo haver de tirar ou desfazer a parede que dividia os ditos povos de que fala S. Paulo, senão também da vocação e redução dos ditos povos à fé de Cristo, por meio da qual conversão e redução se virão a fazer então um só rebanho debaixo de um só pastor, como exprimem as palavras - illas oportet me adducere et vocem meam audient, et futurum ovile, et unus pastor - de maneira que primeiro se hão de reduzir as ovelhas, e obedecer à voz do seu pastor, e então, todas elas reduzidas, se fará um só rebanho.

11.ª Reprova-se ser significado o império otomano, chamado – cornu parvulum - do cap. 7.° de Daniel, por se inferir desta explicação que o império romano não há de durar até ao fim do mundo; mas a dita sentença é de Genebrardo, Elitódio, Tesurdenteu, Fr. Heitor Pinto, Vielmo, Salazar, o padre Bento Fernandes, e outros, os quais fundaram a dita sentença e a interpretaram com graves razões e notícias de que não puderam ter conhecimento os expositores antigos, sendo quase todos os ditos autores não só doutos mas também das religiões mais eminentes em letras como a de S. Agostinho, S. Bento, S. Francisco, S. Domingos, S. Jerônimo, S. Paulo, e a minha de Jesus.

12.ª Reprova-se que antes da vinda do Anticristo possa haver duração deste império por muitos anos, ainda por séculos, e, entre trinta e duas opiniões dos doutores que tenho, ao menos quatro delas são tão largas que não só admitem no dito espaço a duração de séculos, senão ainda de milhares de anos. Esta é a suposição em que falava, tomando-as indeterminadamente.

13.ª Reprova-se a explicação que pelas palavras de Daniel, cap. 7.° - tempus, et tempora, et dimidium temporis - entende-se três séculos e meio; dizendo-se que este sentido é calvinístico, não sobre o mesmo lugar de Daniel, senão sobre outros do Apocalipse em que São João diz que a perseguição do Anticristo há de durar tantos dias, quantos fazem três anos e meio, se hão de entender nas três cláusulas de Daniel: - tempus, et tempora, et dimidium temporis - porém a sobredita explicação é de todos os doutores, que pelo - cornu parvulum - entendem o império otomano e não o do Anticristo, e nesta suposição nenhuma correspondência tem o dito lugar do tempo de Daniel com a dos dias do Apocalipse, nos quais todos os católicos tomam os dias por dias, assim como soam, e refutamos esta limitada duração do império de Anticristo, a imprudentíssima blasfêmia dos calvinistas, com que atribuem ao vigário de Cristo o nome de Anticristo.

14.ª Reprova-se a opinião, que não cursa os mil anos do Apocalipse, cap. 20.°, pelo tempo que tem passado desde a vinda de Cristo, e há de durar até ao fim do mundo. E a dita opinião não só é de muitos santos antigos, senão de gravíssimos doutores, que escreveram de trezentos anos a esta parte, como S. Ulbertino, Nicolau de Lira, Aurélio, Serafim de Fermo, Célio, Panônio, Herculano, Pedro Galatino, Alcacere, e outros, que como em matéria tópica suprível lhe dá cada um o princípio que lhe parece.

15.ª Reprova-se a sentença que pelos mil anos ditos entende principal ou precisamente o número de mil, e afirma-se que eu sou do mesmo parecer, e o dissimulo com o disfarce de anos incertos e indeterminados, por não incorrer nas penas e censura dos milenários; e a dita opinião de mil anos, que entende indeterminadamente o número de mil, é de todos os autores modernos, proximamente citados, e de muitos padres antigos, que de nenhum modo foram milenários, como S. Pascácio, S. Ambrósio, S. Hilário, e outros, sendo certo, como se deve notar, que os milenários, nem são nem foram censurados pela diligência com que computam o dito número de mil, senão por dizerem que Cristo havia de vir ao mundo naqueles anos, para fins meramente temporais e corporais menos decentes à pessoa de Cristo.

16.ª Reprova-se a opinião de haverem de aparecer algum dia os dez tribos de Israel, supondo que não estão no mundo quase todos que deles falam; mas a contrária sentença é de Josefo, S. Hilário, Ruperto, Abulense, S. Antônio, Genebrardo, Cartusiano, Adero, mestre da história do - Fortalitium fidei - e de outros muitos autores de todas as idades.

17.ª Reprova-se a opinião que admite a restituição dos judeus à sua pátria, no caso em que todos se convertam à fé de Cristo, e que cessando geralmente o seu pecado, cessará também o seu castigo. Esta sentença, além de parecer mais conforme aos estilos da misericórdia divina, e ainda às promessas gerais da sua justiça, e às promessas feitas ao mesmo povo, é expressa de Cornélio Alápide, S. Agostinho, Terêncio, Adero, e outros.

18.ª Reprova-se dizer que o Messias esperado pelos judeus é fantástico, fictício e imaginário; nisto segui o modo comum dos teólogos e expositores da escritura, porquanto ainda que seda de fé que os judeus hão de receber o Anticristo por Messias, e que o Anticristo há de ser verdadeiro homem, e não fantástico ou fantasma, o que querem dizer os ditos autores, e o que eu digo com eles, é que o Messias que os judeus esperam, é fingido e imaginado pelos mesmos judeus, sem haver de ter mais outro ser, nem existência, que o dito fingimento e imaginação; porque o verdadeiro Messias já veio, e o que eles esperam nunca há de vir, nem existir, e que ainda que os ditos judeus hão de receber o Anticristo por seu Messias, não é porque o Anticristo seja Messias esperado por eles, senão porque eles vendo os milagres aparentes, que por obra e arte diabólica fizer, hão de cuidar enganadamente, que aquele é o seu Messias esperado, do qual erro porem se desenganarão depois que virem que de nenhum modo concorrem na pessoa as principais propriedades, que no seu Messias fingiam, uma das quais era a perpetuidade, sendo breve império e desastrada morte do Anticristo seja.

19.ª Reprova-se que o ditame e opinião de bastar para prova da verdade e profecia o sucesso das coisas profetizadas, quando os futuros são meramente livres e contingentes, e tais que se não possam antever por alguma arte humana ou diabólica, nem dizer-se acaso; mas esta doutrina é de S. Tomás, Escoto, Caetano, Medina, Valença, Soares, Cristóvão de Castro, Martín Martínez, Hurtado, Marcon, e de outros teólogos, e é praxe de todos os padres que escreveram contra infiéis provando a verdade das escrituras, profetizar pelo sucesso das coisas profetizadas, como se vê em infinitos lugares de S Agostinho, Justino, S. Irineu, Tertuliano, Orígenes, Clemente Alexandrino, Crisóstomo, S. Hipólito, Gregório Papa, Sertório, Sulpício, Teodoreto, Procópio, e outros, e sobretudo nos mesmos argumentos com que os profetas canônicos convenciam as verdades de suas profecias contra a incredulidade dos judeus sendo este (como ensinam S. Jerônimo, Orígenes, S. Ambrósio, e Ruperto) o sinal por onde os profetas verdadeiros, se distinguem dos falsos.

Estas são as opiniões reprovadas, nas quais se deve ponderar que no processo e qualificações dele se propõem e expendem somente as razões e fundamentos com que as ditas opiniões se reprovam e impugnam, e não aquelas com que seus autores, não só as fazem prováveis e forçosas, senão também de maior nota e evidência, e por isso as seguiram:

1.ª Se deve notar que não sigo, nem seguia determinadamente algumas das ditas opiniões reprovadas, porque ainda não tinha feito eleição do que havia de seguir em caso que fizesse o livro, como fica mostrado.

2.ª Se deve notar que para o intento do meu assunto pela maior parte não era necessário seguir determinadamente algumas das ditas opiniões, e assim propunha ou resolvia problematicamente, assinalando diversos modos de dizer, em que na suposição de cada um deles se erigia o dito assunto, porque acerca do império romano mostrava, como podia haver Quinto Império, ou com extinção dele, ou sem ela. Acerca do - cornu parvulum - mostrava como podia haver também Quinto Império, ou entendendo-se na figura o turco, ou Anticristo. Acerca da conversão universal mostrava como se podia admitir o estado consumado da Igreja, ou seja, antes do Anticristo, ou depois dele. O mesmo acerca do domínio temporal de Cristo. O mesmo acerca da duração do mundo. O mesmo acerca do número dos predestinados. Sendo certo que quem propõe as opiniões problematicamente, ainda que prossiga o seu discurso, vai segundo a suposição delas por não ser possível caminhar juntamente por diferentes caminhos.

3.ª E é ponto que muito se deve notar, que acerca das verdadeiras profecias de que falo no número 14.° há ou havia duas opiniões, uma que afirma bastar só o sucesso das coisas profetizadas na forma acima referida, ou além do dito sucesso requerer que nas ditas profecias se não contenha falsa doutrina, e quando eu disse e quis julgar que o Bandarra fora verdadeiro profeta, falei na suposição de ambas estas opiniões, e de qualquer delas; porque a primeira supunha que as predições do Bandarra estavam confirmadas com os sucessos, e que nas ditas predições não havia doutrina falsa.

Nem faz contra isto dizer no dito papel, que as profecias não têm outra prova senão os sucessos das coisas profetizadas, ainda na sentença que requer a verdade, como prova ou parte da prova da profecia, e outra que requer somente como condição de maneira que conforme o primeiro modo de dizer - prophetiae probantur per eventum, dummodo nihil contengat contra bonam doctrinam.

Este segundo modo de dizer, é o que eu segui, falando coerentemente dele, e suposto que em Bandarra concorria o sucesso das coisas profetizadas, e mais a boa doutrina, mas esta não como prova da profecia, senão como condição, e por isso lhe não prova como lhe não chamam todos, os autores que seguem este modo de dizer, nos quais se pode ver, e principalmente em Cristóvão de Castro sobre Jeremias, e sendo certo e claro que por nenhum modo quis seguir somente a primeira opinião, ainda que a tivesse por ordinária e praticada, senão juntamente ambas, porque fica mais fortificada e estabelecida a maior daquele silogismo, que era o fundamento principal e base de todo o discurso.

E se não fiz expressamente todas estas suposições e declarações (como também se omitiram outras no mesmo papel) foi porque a brevidade de uma carta pedia os termos mais precisos, e porque sendo escrita a uma rainha não era bem se lhe confundisse a clareza do discurso com o embaraço das opiniões.

4.ª Se deve notar que eu não defendo, nem defendi algumas das doutrinas reprovadas, e somente tratei de mostrar que não eram minhas, ou intentadas por mim, e os motivos que tive para a: reputar por sã doutrina.

5.ª Se deve notar, que suposto serem as ditas opiniões de matéria tópica, e seguida dos autores católicos, e não estarem proibidas, nem censuradas até o tempo que as escrevi ou referi, de nenhum modo se me devia imputar a culpa ou erro delas, ainda que afirmar, ou defendera as conclusões de meus discursos, porque é livre aos professores de letras seguirem as opiniões dos doutores que melhor servem a seu intento, como fazem os escritores eclesiásticos e fizeram sempre os mesmos santos padres, os quais em diversos lugares seguem pela dita razão opiniões contrárias, como nota e prova S. Gregório Papa, sendo manifesto que eu não podia antever, que algumas das ditas opiniões, e muito menos quais delas, houvessem de ser reprovadas.

PONDERAÇÃO 4.ª
ACERCA DAS SUPOSIÇÕES

Como a matéria do meu assunto era tão particular, e não tratada ex professo por algum outro escritor, e no primeiro papel se acudia somente a ela sem declaração das ditas alusões e intento do dito papel, e mui alheias do assunto dele as suposições que de tudo se formaram e argüíram, das quais suposições é forçoso referir ao menos as mais notáveis.

1.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é humano como o dos inquisidores ordinários do mundo, e não é senão o império e reino de Cristo.

2.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é futuro, e não é império do futuro, senão o mesmo império e reino de Cristo que foi, é, e há de ser, e só se diz que há de ter um grande aumento no último e confirmado estado da sua duração.

3.ª Supõe-se que o dito Quinto Império há de mediar entre o romano e o do Anticristo, como que é o sexto: eu não digo tal, nem é necessário dizer-se porque para um império ser o quinto, outro o quarto, basta que este comece primeiro e o outro depois, ainda que ambos continuem a sua duração no mesmo tempo, como de fato aconteceu ao império grego, e ao romano, que são terceiro e quarto de Daniel, ou dos impérios de que ele trata, e como também vemos hoje no quarto império, e no quinto, que é o do Anticristo, os quais simul continuam enquanto ao nome de reino, que em respeito do romano se chamará o quinto. O império do Anticristo se se fizesse a comparação com ele, se poderia o nosso chamar sexto império, mas tenho para mim que o do Anticristo a respeito do de Cristo não há de ter o nome de império, senão de perseguição, nem de imperador senão de tirano.

4.ª Supõe-se que este império de Cristo é o mesmo que se prometeu ao imperador temporal acima referido; e o que se diz do imperador temporal, se diz também de Cristo, e do seu império; e esta equivocação é a que tem embaraçado notavelmente a inteligência de todo o assunto, e feito grande dano às proposições dele, sendo coisa mui sabida que é diversa da outra, porquanto o império de Cristo é passado, presente e futuro, e o do imperador só futuro; o de Cristo é temporal e espiritual; o do imperador só temporal; o de Cristo é de supremo Senhor do mundo e cabeça da Igreja, e o do imperador é de ministro, súdito e soldado dele; sendo este imperador em respeito de Cristo e seu império o mesmo que foi Constantino ou Carlos Magno, só com suposição de haver de ter domínio depois da conquista dos infiéis.

5.ª Supõe-se que deste imperador e império, é o que se chama quinto império; e neste nome há também grande equivocação, porquanto o do imperador e império se toma como ministro e instrumento do império de Cristo, enquanto temporal, e no caso não constitui diverso império, e somente é parte material e integrante do império universo de Cristo, ou se tome o dito império absoluta, ou distintamente. como qualquer outro em respeito dos impérios passados, e neste caso se o dito império futuro estiver dividido do romano, chamar-se-á quinto, porque veio depois dele, que é o quarto ou quinto, formando a denominação de qualquer deles, e juntamente chamar-se quarto ou quinto, segundo os diversos respeitos, assim como El-Rei Filipe se chamou III do reino de Portugal e IV do reino de Castela.

6.ª Supõe-se que este império há de ser com extinção do reino; nem eu tal digo, nem é necessário tal suposição; porque se se fala na extinção dele em a casa de Áustria, supondo, como desde o princípio disse, que o império romano há de ser daquela casa, e passar-se a real de Portugal não implicando que a mesma pessoa haja de ser imperador de Constantinopla, e ainda de outro maior império, e seja juntamente império romano, que são os próprios termos por que fala S. Metódio nem implicando que estes dois impérios postos na mesma pessoa, um em respeito do outro, sejam quarto e quinto, e que durando ambos até à vinda do -Anticristo, em respeito de um seja o império do Anticristo quinto, e em respeito do outro sexto.

7.ª Supõe-se que provo o Quinto Império com os lugares da escritura, com que os prova o Bandarra, porque ele não fala em império a que ele chama quinto, nem eu digo tal coisa.

8.ª Supõe-se que não pode estar profetizado o dito estado, ao menos em quanto à conversão universal, porquanto em tal caso haviam de estar anunciadas as ditas profecias às nações de gentilidade, que se hão de converter, como se anunciaram ao povo judaico e seus sucessores futuros, mas este fundamento não é recebido dos autores da opinião que digo, os quais em contrário mostram com a experiência e exposição comum de todos os modernos, que a conversão da China, Japão e América estava profetizada em muitos lugares da escritura, sem nunca lhes ser antecedentemente anunciada ut patet.

9.ª Supõe-se que não pode haver o dito estado consumado da Igreja e império de Cristo por não estar profetizado na escritura, mas o contrário consta de todos os meus papéis, e dos autores da dita esperança e opinião, os quais mostram o dito estado profetizado em vários textos no Novo e Velho Testamento, principalmente nos Cânticos de Salomão e no Apocalipse.

10.ª Supõe-se que o mesmo se segue de eu responder, que não consta nem pode constar do tempo certo da duração do dito estado, porquanto Deus sempre assinala o tempo em todos os séculos revelados, como se vê no cativeiro do Egito e Babilônia, e nas leis Hebdômadas de Daniel, a qual seqüela e seu fundamento também não admitem os autores da opinião que sigo, porque Deus não tem obrigação de revelá-los - tempore et momento, quae pater possuit in sua potestate - ainda que os tempos e medidas da duração do dito estado estejam reveladas nos ditos textos dos Cânticos e Apocalipse, ou em outros da escritura, nem por isso se segue haverem de se saber ao certo, por não constar do modo com que se devem computar os dias, ou anos deles, como se vê nos mesmos exemplos alegados, em que Daniel não entende os setenta anos de cativeiro de Babilônia escritos por Jeremias sendo que eles se acabaram de cumprir, e sobre as Hebdômadas e sua inteligência, ainda hoje há tanta controvérsia entre os teólogos, e quase a mesma sobre o conciliar a cronologia do texto de Moisés com a de São Paulo, acerca dos anos do cativeiro do Egito.

11.ª Supõe-se que admitir o dito estado da Igreja e reino de Cristo, se segue também admitir outros adventos, e entender que há de vir Cristo visivelmente do Céu à Terra a obrar e consumar o dito estado, porque Deus - non adimplet effectus possibiles - senão por causas viáveis, a qual suposição é totalmente alheia do estado e opinião de seus autores e minha, porquanto ainda que o dito princípio dos efeitos e causas visíveis fora universalmente verdadeiro, as causas visíveis próximas, que tantas vezes tenho assinado, são os pregadores evangélicos. e o sumo pontífice; e o instrumento temporal e remoto é o imperador, e a sua assistência também visível, sem ser necessário que Cristo imediata e universalmente venha do Céu à Terra a obrar as ditas conversões, como até agora tem feito em todas as da sua Igreja, por meio dos pregadores, assistidos quando é necessário, por príncipes católicos e pios.

12.ª Supõe-se que o dizer eu, ou ter para mim, que os ditos pregadores hão de converter o mundo, por motivos da potência temporal daquele imperador, eu nunca tal disse nem imaginei, senão que os motivos que há de propor hão de ser os da claridade da nossa santa fé, sem concorrer o dito imperador mais que com a assistência da segurança, ou despesas necessárias aos pregadores.

13.ª Supõe-se que eu digo, ou suponho, que o poder temporal do dito imperador de tal maneira será necessário para a dita conversão, que só assim se poderá fazer - et non aliter- esta suposição também não é minha nem dos autores da dita opinião, os quais só dizem que o dito imperador será somente conducente ao fim, e ao mistério da conversão e só - per accidens - necessário para ela, como foi necessário a S. Francisco Xavier, para converter a Índia, que El-Rei D. João o III lhe desse nau em que passasse, podendo levá-lo por terra ou por cima das águas, como se diz levou a S. Tomé, e podendo o dito santo converter os índios sem assistência e favor dos vice-reis, que ele confessa por importante, S. Francisco os não converteu sem eles.

14.ª Supõe-se que este modo de conversão é mero judaico, e quer ajuntar a Cristo com o Anticristo, porquanto o motivo por que os judeus rejeitam a Cristo, e o não quiseram receber por Messias, foi porque veio pobre sem potência temporal, mas já Fica mostrado que o dito modo é de pregação e conversão, que supor-se (sic) é o que pratica hoje a Igreja, que nelas houve príncipes cristãos aprovados por todos os santos pontífices e exercitados pelos bispos e varões apostólicos e mais santos, como S. João Crisóstomo, S. Domingos e outros; porque a assistência dos príncipes não tira que o objeto da pregação seja Cristo crucificado, o qual sem embargo de ter sido - judaeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam - quando Deus tira o véu dos olhos a uns e toca o coração dos outros o adoram na mesma cruz.

15.ª Supõe-se que as felicidades prometidas, e o dito estado do império consumado de Cristo, são sumas felicidades, delícias e riquezas, e outras que corrompem os bons costumes, sendo que tal coisa não disse nem escrevi, senão tudo em contrário, como são virtudes, santidade, graça e salvação, na forma em que o prometem os autores da dita esperança, não havendo nela coisa temporal, mas que por meio do império católico daquele príncipe, e paz universal e vitória contra infiéis, coisas todas ordenadas ao bem espiritual da Igreja, e as quais pede o mesmo Deus para a continuação.

16.ª Supõe-se que de admitir a opinião que entende pelo - cornu parvulum - de Daniel, o império otomano se segue, que não é Cristo, ainda vindo ao mundo, porque as duas visões do dito profeta falam do primeiro advento do mesmo Cristo, mas nem os autores da dita opinião ou interpretação sendo tantos e tão católicos, religiosos e doutos, quiseram assinar tal erro, nem entenderam que ele se seguia do dito princípio, pois a mesma ilação se pode fazer, que pelo –cornu parvulum - e sua extinção entendo o Anticristo, porque tão certo é não estar ainda destruído o Anticristo, como não estar ainda destruído o império do turco.

17.ª Supõe-se que em admitir o império temporal de Cristo, digo ou quero que Cristo veio ao mundo a restituir e restaurar o reino de Judéia e dos judeus; porque digo só, suponho, e creio que Cristo veio ao mundo a destruir o reino do Demônio e do pecado, e restaurar o gênero humano, e recuperar-lhe o reino do Céu, que pelo mesmo pecado se tinha perdido: e quanto à restituição dos judeus, não antes, senão depois de convertidos, só admito com a opinião acima referida, o que admitem os autores dela.

18.ª Supõe-se que o imperador é o Messias dos judeus, e que com a promessa dele os fomenta Bandarra; que este seu imperador havia de ser português e descendente de El-Rei D. Afonso Henriques, a quem, como ele diz, foram dadas as chagas de Cristo por armas, e que em virtude das mesmas chagas havia o mesmo príncipe destruir ao turco e vingar as injúrias da Igreja, e desfazer todas as heresias, e que em concurso de quatro reis havia de receber a investidura do novo impou da mão do pastor-mor, isto é, do sumo pontífice, e que ele havia de dar muitos perdões e indulgências, de que o dita imperador e seus vassalos irão armados à conquista da Terra Santa. Parecia-me que todas estas condições e propriedades, de nenhum modo podiam competir senão àquele imperador dos cristãos prometido por tantos santos, com as qualidades e para o mesmo fim, entendendo também que não contradizia isto o levar o imperador à conquista da Terra Santa gente de todas as leis; pois essa é a maravilha da conversão dos judeus, de que Bandarra fala; da qual suposição é natural conseqüência irem à dita conquista parte de todas as leis, nova e velha, mas já convertidos estes e sujeitos ao sumo pontífice, como e mesmo Bandarra expressamente diz.

19.ª Supõe-se que o Bandarra promete ao dito imperador grandes felicidades e riquezas, e exaltação temporal, sendo que o dito Bandarra promete ao seu imperador, é a vitória dos turcos; a exaltação em que fala não é do imperador, senão expressamente da fé, e as riquezas que promete da prata e oiro, são os autores que os ditos judeus convertidos prometem, não ao imperador, senão à Igreja e ao sumo pontífice, e à imitação do que ofereceram os Magos a Cristo, em reconhecimento da sua fé e obediência.

20.ª Supõe-se que Bandarra é suspeito de judaísmo, porque não sinala fim ao império do seu imperador, e que eu também incorro na mesma suspeita, porque ainda que lhe assinalo fim, e fingidamente: mas à certeza da suposição tirada de dois atos tão opostos, não se pode responder nesta vida, porque pertence ao juiz dos corações.

21.ª Supõe-se que o Bandarra é suspeito de judaísmo, porque supõe que o dito império há de ser com extinção do romano, como os rabinos ensinam e esperam, que há de fazer ô império do seu Messias: mas Bandarra - ut patet- não fala com extinção do império romano; e somente diz que o seu imperador com ser descendente D'el-Rei D. Fernando, não será de casta Goleima, isto é, alemão e da casa de Áustria, como eu interpretava.

22.ª Supõe-se que o Bandarra não diz que El-Rei D. João há de ressuscitar, mas o inferi assim das suas trovas, e porque me pareceu que elas o diziam, mão só pôr conseqüências errôneas, mas por suficiente expressão de palavras: assim que, do que interpretei, bem se segue que disse o que diz Bandarra, e se disse mal, segue-se que não soube entender as trovas de Bandarra, que é ignorância e não culpa, suposto que o ressuscitar um homem seja coisa que Deus tem feito muitas vezes, e por muito menores fins que os que parece se colheram do mesmo Bandarra, todos de grande glória de Cristo e bem da sua Igreja.

23.ª Supõe-se que aqui parti a verdade de Bandarra com a verdade da Escritura Sagrada, e a certeza de ressurreição de El-Rei D. João IV com a de Isaque; e é certo que nem foi, nem quis fazer tal equiparação, e só disse e quis dizer, que a minha ilação naquela conseqüência era semelhante à de S. Paulo no caso de Abraão, e que aquele modo ou gênero de inferir, não só era discurso, senão de fé, pois nem só eu inferia pôr aquele modo ou gênero de inferir, mas também S. Paulo tinha feito a mesma inferência.

24.ª Supõe-se que chamar eu profeta ao Bandarra é sustentar aos judeus na sua profecia, inculcando-lhes que ainda tem profetas da sua nação contra o salmo - jam non est propheta et non cognoscet amplius - e posto que depois de escrever este texto, e de faltarem profetas naquele povo (como muitas vezes faltaram), teve ele não menos que todos os profetas canônicos: não fui eu só o que tive neste reino ao Bandarra por profeta, e que ele predizia os futuros, senão todos os que liam, interpretavam, alegavam, provavam e exprimiam, sem que por isso se presumisse de tantas pessoas doutas, católicas e timoratas, que tivesse alguma delas pensamento de favorecer na dita opinião os judeus, quanto mais nunca podia ser o Bandarra profeta do povo judaico, porque sempre o tive e tenho ainda pôr cristão-velho, e dado que fora da nação hebréia, sendo cristão e filho da Igreja, se segue que era profeta da mesma Igreja, e não da sinagoga, e santo como S. Paulo, S. João Evangelista, S. Jacó, e outros que escrevem os atos dos apóstolos, ainda que fossem hebreus de nação, nem por isso eram profetas dos judeus, senão de Cristo, e assim tive para mim, que na suposição do Bandarra ser profeta de Cristo e da Igreja, e de um reino cristianíssimo, como o de Portugal, correspondendo) a este a opinião e assunto de suas profecia., ou predições, que todas me pareciam ordenadas à exaltação da fé de Cristo e suas chagas, e extirpação de todo o gênero de heresias e não anunciando aos judeus, nem a seus tribos, mas que a sua redenção, fé e obediência da Igreja, e haverem de acabar e ter fim todos os seus erros.

25.ª Supõe-se dizer eu que Bandarra via futuros - intuitive - pelo mesmo modo que é próprio de Deus; e tal coisa não disse nem escrevi, nem disputei, supunha somente que os via, ou podia ver por um de três modos com que os profetas vêem os futuros, e por isso se chamam – videntes.

26.ª Supõe-se que o dito Bandarra é suspeito de judaísmo, porque não fala na Santíssima Trindade, nem em Nosso Senhor, nem na paixão de Cristo, e que eu por comentar e seguir o mesmo, incorro na mesma censura: mas a verdade é que se não podia inferir os ditos erros pela razão que se supõe, porque há muitos e maiores livros de autores católicos e santos, que não falam em Nosso Senhor, nem na Santíssima Trindade, que é nome que também se não acha em toda a Sagrada Escritura pelo vocábulo - Trindade - bastando que se achem as pessoas em número, como também basta que se achem em Bandarra (como se acham muitas vezes) a saber: das três Pessoas da Santíssima Trindade, que é o que os judeus particularmente negam, acha-se assim mesmo nele o milagre da Redenção chamando a Cristo Redentor e Salvador, acha-se a paixão falando no Calvário e nas chagas muitas vezes e com muita honra, acham-se os sacramentos nomeando-os sempre com respeito, o batismo, crisma, ordem, e os corporais da sagrada eucaristia; acha-se finalmente o Inferno e glória- chamando a Cristo muito alto Rei da Glória, que é confessar manifestamente sua divindade; anunciando finalmente que serão contrários os signos e arriamos; e é certo que a heresia de Árrio e dos arrianos, como a dos judeus, é negar a divindade de Cristo, assim que pelos fundamentos da suposição não podia eu inferir que o Bandarra e o seu livro fosse suspeito de judaísmo.

27.ª Supõe-se que as palavras do dito livro do Bandarra - que os judeus serão cristãos sem jamais haver erro - são judaísmo dissimulado debaixo delas, as quais eu não entendi assim nem ainda sei como se poderá dizer que os judeus serão cristãos, e que a seita que agora seguem é erro, senão por aquelas mesmas palavras, principalmente dizendo o mesmo Bandarra em outra parte, que os judeus e os turcos se hão de acabar, e isto é o que eu digo, e o que se achará escrito nos meus papéis.

28.ª Supõe-se ser opinião minha que a mesma profecia pode ser verdadeira profecia e conter doutrina falsa; mas esta suposição, como as outras que se fundam em palavras equivocadas e as demo por de menos preço, envolve uma grande equivocação, porque a dita palavra - profecia - pode significar uma profecia, isto é, somente uma proposição profética, e neste significado é implicância manifesta, poder mesma profecia conter doutrina falsa, porque para ser profecia há de se revelada por Deus, e Deus mão pode revelar coisa falsa em nenhuma matéria, quanto mais em matéria doutrinal; em outro sentido pode a palavra profecia não significar uma proposição, senão um livro ou tratado de proposições proféticas, ou chamadas profecias, assim como o livro de lsaías se chama - Profecia - e não - Profecias - e o livro do Apocalipse de São João se chama - Apocalipse - e não - Apocalipses - e neste segundo significado, conforme a opinião comuníssima, que admite no mesmo sujeito verdadeira profecia e erro contra a fé, acerca de diversos objetos pela qual alega S. Crisólogo, e mais cinqüenta doutores, me pareceu bem podia e mesmo livro ou papel conter proposições verdadeiramente proféticas, e algum,: ou algumas que contenham falsa doutrina, escritas por ilusão ou ignorância, e ainda por malícia do que teve as verdadeira revelações; mas esta opinião ou modo de, dizer, se há de entender si das pessoas e revelações particulares, porque se a pessoa for ministro, e ainda intérprete da sua palavra, então pertence à providência divina - ex alio capite - estorvar, e não permitir, que nem por ilusão nem por malícia, nem por ignorância, diga coisa errada; e porventura quis com esta distinção conciliar as duas sentenças opostas, por que, como notei no papel apresentado na mesa, há dois ou três gêneros de verdadeiros profetas: os do primeiro gênero são canônicos, tiveram por ofício (como muitos) serem intérpretes de Deus, como Isaías e Daniel. Os do segundo gênero também são canônicos, mas não tiveram o dito efeito, como muitos, José e Davi. O do terceiro gênero, que não são canônicos, nem tiveram o dito efeito, como muitos santos, e outras pessoas ilustradas com verdadeiro espírito profético; e nas profecias ou escritos dos profetas do primeiro e segundo gênero, de nenhum modo, e em nenhuma opinião pode haver palavras que contenham falsa doutrina.

Porém, nas profecias ou escritos dos profetas do terceiro gênero, parece-me, que, conforme a opinião sobredita, não implicam poder juntamente haver verdadeira profecia, e erro contra a fé: assim como o mesmo sujeito tem profecia e erro no mesmo entendimento, por que não poderá também escrever essa profecia e esse erro no mesmo papel? De maneira que se um santo, depois de ter revelações de Deus, tivesse algumas ilusões do Demônio, não conhecidas por tais (como se lê de muitos), e nas ditas ilusões se contivesse algum erro material contra a fé, parece que poderia o dito santo no papel escrever as verdadeiras revelações de Deus e juntamente o erro da sua ilusão; e se um rústico ou idiota tivesse algum erro também material contra a fé, e durante este erro Deus lhe revelasse alguns futuros, parece que poderia o dito idiota escrever no mesmo papel as profecias da sua revelação, e mais os erros da sua ignorância. Finalmente, se qualquer homem a quem Deus revelasse futuros, e depois das ditas revelações caísse em algum erro contra a fé, e sem cair neste o quisesse proferir maliciosamente, parece que poderia escrever no mesmo papel juntamente assim as verdades da revelação de Deus, como o erro ou erros da sua malícia, e em todos estes casos, e qualquer deles, se segue que no mesmo papel, e na mesma escritura, debaixo do mesmo nome de profecias e revelações haveria verdadeiras profecias, ou proposições verdadeiramente proféticas, e reveladas juntamente, e outras que contivessem erros e falsa doutrina.

Isto é o que me pareceu se podia dizer coerentemente, suposta a dita opinião, a qual porém não é minha, senão de seus autores. Só advirto, que, do que acabo de dizer, se não infere coisa alguma contra o que tenho dito na ponderação 3.ª n.° 4, acerca da verdadeira profecia, porque somente se segue daqui, não se poder provar que estas profecias são verdadeiras profecias, ainda que verdadeiramente o sejam, porquanto suposto estarem escritas de mistura com erros e falsa doutrina, ou lhes falta parte da prova, conforme o primeiro modo de dizer, ou lhes falta a condição referida, conforme o segundo.

29.ª Supõe-se saber eu que o livro do Bandarra estava proibido por suspeito de judaísmo. Eu tal coisa não soube, antes supus sempre o contrário, não me vindo ao pensamento, que pudesse ser proibido, e muito menos proibido por suspeito de judaísmo, um livro que os senhores inquisidores e prelados deste reino consentiam correr nele manuscrito, e impresso, e que não só era lido e interpretado pelos mesmos prelados, mas consentindo ou aplaudindo que s alegasse nos púlpitos, e se imprimissem muitos lugares dele em Lisboa, com licença do santo ofício, enquanto se mostrava ter predito Bandarra os seus futuros meramente contingentes; e se afirmava com aprovação do mesmo santo ofício, que fora homem de boa vida, que não pode estar com ser suspeito na fé.

30.ª Supõe-se que em Roma se não proíbem livros senão por matéria de fé, e que nesta insinuava eu, podiam ser lisonjeados os castelhanos nos supremos tribunais da sagrada cúria: mas a verdade é imaginarem também por outras matérias graves, ainda que não sejam de fé, se podiam proibir, e se proíbem livros em Roma, como se proibiu o livro de Antônio Pores, e nessa suposição falava.

31.ª Supõe-se que eu tinha ódio ao sumo pontífice, e à sagrada congregação do santo ofício em Roma, por ela haver censurado as minhas proposições, sendo que tal notícia não tive, senão depois que se me leu nesta reclusão, e que o papel de que sou argüido do dito ódio, foi escrito e enviado ao conselho geral muitos dias ante dela, do qual papel se prova ser tão contrária à minha notícia e suposição, que nesse mesmo representava ao dito conselho geral o pejo que tinha, em que as partes do meu assunto, que tocavam a Portugal, fossem enviadas a Roma, onde tinha ouvido se remetiam alguma matérias, sujeitando no mesmo tempo esta e as demais, não só a um senão a dois tribunais do santo ofício, em Lisboa e em Coimbra.

32.ª Supõe-se que recusando de suspeitos nas ditas causas de Portugal aos ministros de Roma, debaixo da palavra - ministro - entendia ao sumo pontífice, e à sagrada congregação dos eminentíssimos cardeais superiores ao santo ofício deste reino, mas a verdade sincerissimamente é, que, segundo a informação que tinha dos estilos de Roma e Portugal, em tais casos entendi somente debaixo da dita palavra - ministros - aos qualificadores de Roma por votos consultivos que no conselho geral deste reino se houvesse de resolver, não sendo tão ignorante, que imaginasse, que debaixo do nome - ministros - se entendesse o sumo pontífice, nem que a todo o tribunal do santo ofício se podiam pôr suspeições, e que estas, sendo de superiores, se houvessem de julgar pelos inferiores; e por me não constar dos sobreditos estilos bastantemente, para purificar qualquer culpa ou desacerto daquele papel, acrescentei (como fica dito) a cláusula - no que me foi possível - e protestei por tudo o que por minha ignorância houvesse errado.

33.ª Supõe-se que as ditas suposições acerca dos ministros romanos, foram postas em ordem a muitas coisas de fé, sendo certo que todo o meu intento e receio só era por alguns pontos históricos, e juntamente pela história e juramento D'el-Rei D. Afonso Henriques, que, como no princípio disse, era a pedra fundamental de todo o assunto no tocante a Portugal; porque sendo o dito juramento tão recebido, e tantas vezes aprovado neste reino pelo santo ofício é certo que todas as nações estrangeiras, e muito mais os castelhanos e italianos, zombam da verdade da dita história, e a têm por mera impostura e fábula, máxime dizendo-o assim Mariana[1] que em Itália é o texto das histórias de Espanha; e sendo lá reprovada a dita história, ficava o meu assunto perdido, estando pelo contrário certo que em Portugal se não havia de reprovar.

34.ª Supõe-se que o dizer eu, e representar ao conselho geral, que o assunto do dito livro era tão grande, que pessoa douta e sábia o julgava por digno de um concílio, mostrava - mere hereticum - querer apelar do sumo pontífice - ad concilium futurum - eu não sei como destas palavras se podia presumir em mim tal extremo de contumácia e desobediência à sé apostólica, sendo as mesmas palavras escritas a um tribunal e ministros, não só súditos, senão os maiores reverenciadores do sumo pontífice, escritas em uma súplica em que lhe pedia com muita submissão tempo suficiente para discutir os fundamentos do dito assunto, e os sujeitar logo ao mesmo tribunal sagrado para com aprovação sua saber o que havia de seguir em todas as matérias dele, como expressamente se contém no dito papel.

35.ª Supõe-se, finalmente, que quando escrevi em uma parte de meus apontamentos, que o Bandarra podia ser chamado ao santo ofício por calúnias, e em outra parte com uma autoridade de Castro, que alguns censuradores por quererem censurar proposições alheias, mostravam erro e ignorância das suas; e em ambos os ditos lugares quis remoquear aos ministros do santo ofício, atribuindo-lhes as calúnias, ou erro, ou ignorância; e verdadeiramente que quando isto me foi dito fiquei afrontado e corrido, de que tal descomedimento e despropósito cuidasse do meu pouco juízo, sendo coisa muito clara, que no primeiro lugar que falava dos denunciadores do Bandarra, que o podiam acusar caluniosamente com falsos testemunhos, de que se não livra tribunal algum, por mais puro e santo que seja, como, segundo minha lembrança, digo no mesmo lugar: no segundo dos censurados, aludia e remoqueava nomeadamente ao padre Luís Alves, reitor do colégio do Porto, e ao abade fr. Jorge de Carvalho, por suspeitar que algum deles, ou ambos, haviam denunciado certas proposições, de que se me faz cargo, que eu tinha dito em conversação, mal entendidas ou interpretadas por eles, e constando como consta, que os ditos apontamentos eram para fazer o papel ou livro que tratava de apresentar aos senhores inquisidores, e de suas mãos havia de passar aos revedores e qualificadores do santo ofício: bem se vê que quem esperava dos ditos ministros seu bom despacho, não os havia de querer picar com palavras tão indignas e descorteses, sendo igualmente certo que as ditas palavras se haviam de riscar, e não haviam ser copiadas, sem que ao compor, e ordenar o dito papel, me ocorresse a menor imaginação de que podiam ser tomadas ou torcidas na suposição em que eu agora as vejo.

Estas são, senhores, as suposições de que se me forma não parte do meu processo, senão todo ele, supostas e deduzidas todas contra a formalidade do fato ou contra a formalidade do sentido, ou quando menos contra a formalidade da tenção, e do ânimo com que foram proferidas as proposições, como em todas fica mostrado ou apontado, quanto sofreu a brevidade deste memorial, e como mais claramente conhecerá quem as considerar atentamente: sobre elas peço se me ponderem principalmente duas coisas:

1.ª Que todas as proposições tomadas contra a suposição verdadeira, ou formal, ou de fato, ou dos fundamentos, ou do sentido, ou da conhecida tenção com que as proferi, de nenhum modo são proposições minhas, e como de proposições não minhas, se me não deve fazer cargo, nem atribuir erro ou culpa delas.

2.ª Que não subsistindo por qualquer dos sobreditos modos as ditas proposições, ficam também sem substância, e de nenhum vigor todas as suspeitas censuradas, e conseqüências que delas se deduzem, por mais exata e natural que pareça a forma com que são deduzidas, da qual forma agora direi.

PONDERAÇÃO 5. ª
ACERCA DAS CONSEQÜÊNCIAS

Posto que das sobreditas suposições, e do modo com que me foram supostas e introduzidas, reconheci com grande admiração, e edificação minha, a superlativa sabedoria, vigilância, e circunspecção deste sagrado tribunal, e alta prudência inspirada por Deus, com que está ordenada a eficácia de seus meios para convencer, penetrar, descobrir, e tirar outro qualquer erro ou engano contra a pureza da fé, por mínimo e oculto que seja.

Muito maior conhecimento formei de tudo isto no artifício e disposição dos argumentos e conseqüências com que tão apertadamente fui argüido, redargüido, e instado, posto que todos fossem contra mim; e porque tenho tão justos fundamentos para recear, que sem embargo de serem fundados sobre as suposições tão diversas das minhas se possam persuadir e fazer crer, é-me necessário ponderar e descobrir o dito artifício dos argumentos ou conseqüências: para que se veja que nenhuma delas, nem seus erros me devem prejudicar, porei de cada gênero um exemplo.

As conseqüências do primeiro gênero são aquelas em que do grau remotíssimo em concurso se infere a diferença particular como disséramos: este indivíduo é animal, logo é víbora: assim nem mais nem menos se me atribui a peçonha. Exemplo. Os judeus esperam que o seu Messias há de ser imperador do mundo, e o turco também espera semelhante aumento ao seu império, até aqui o proferente diz que o imperador acima referido há de ser imperador do mundo: logo esta esperança é judaica e maometana, como se não for possível e imaginável haver imperador no mundo, senão daquelas nações e daquelas seitas

O mesmo argumento se pode fazer em contrário: os espanhóis e franceses esperam e aspiram à monarquia universal: logo esta esperança e católica e cristianíssima, e melhor ainda sobre os fundamentos e autoridades do mesmo assunto. Muitos santos e muito varões insignes em virtude e espírito de profecia, prometem o sobre dito imperador, logo esta esperança é santa, logo esta esperança profecia.

As conseqüências do segundo gênero, são as em que se cala o que digo, e se supõe o que não digo: e de premissas em que se cala o afirmado, e se supõe o negado ou imaginado, que muito se infiram tão horrendas e afrontosas conseqüências como as que tenho ouvido? Exemplo no mesmo imperador: eu digo com os autores da dita opinião, que este imperador há de ser europeu, cristão, descendente de príncipes cristãos, zelosíssimo do serviço de Deus, propagador da fé de Cristo, e que todo o poder e autoridade se há de empregar nele, e no serviço da Igreja e obediência ao sumo pontífice ajudado deste imperador se há de converter e reformar o mundo florescendo mais que nunca o culto divino, a justiça, a paz, e todas virtudes cristãs, acrescentando pelos fundamentos particulares deste reino, que o dito imperador há de ser português, e rei do nosso reino de Portugal e cabeça do império, Lisboa. E sendo esta a manifesta verdade do meu assunto, tantas vezes repetida em todos os meus papéis, e tão coerentemente achada em todas as partes e fragmentos deles, e sobre se calarem todas as qualidades proferidas do dito imperador, as que se supõe e afirmam que eu digo, ou quero dizer, são que o seu império há de ser de sumas delícias e riquezas, e ambiciosa potência, e que há de converter o mundo em si, e não a Cristo, e que os motivos da conversão não hão de ser os da cruz, fé, e divindade do mesmo Cristo, senão de potência humana, e finalmente, que há de ser este imperador do verdadeiro Anticristo, Messias esperado pelos judeus, e judeu de nação e profissão, e que Deus lhe há de dar o império ex observationibus legalibus, isto é, pela observância das leis e cerimônias judaicas, e infinitas coisas deste gênero, nem ditas, nem imaginadas por mim, nem ainda imagináveis. E como ao dito imperador se lhe tiraram as propriedades que lhe dão os santos e autores católicos, e lhe aplicam e lhe põem as que os judeus atribuem ao seu Messias, que muito é que sendo imperador cristão, pareça -Anticristo; e que sendo príncipe católico, pareça judaico?

Senhores, se a S. Cristóvão lhe tirassem dos ombros o Menino Jesus, e lhe pusessem uma esfera, há de parecer atlante; e se ao Menino Jesus lhe tirarem da mão o mundo e a cruz, e lhe puserem um arco e aljava, há de parecer Cupido; pois assim como um homem católico e santo, tirando-lhe as suas insígnias, e pondo-lhe outras, se pode converter em um monstro gentílico e fabuloso, e o mesmo Cristo em um ídolo, assim tem sucedido ao imperador do meu assunto, sem embargo de ser tão católico e pio, e tão católicos e santos os que o prometem, porque lhe tiraram as suas insígnias, e lhe puseram outras

As conseqüências do terceiro gênero, são as que se fundam na equivocação ou impropriedade dos nomes, passando debaixo deles de um significado a outro. Exemplo nos milenários: os milenários fundam a sua opinião nos mil anos do cap. 2 ° do Apocalipse do qual lugar também usa o proferente em prova do seu terceiro estado do império de Cristo; logo também é milenário? Até aqui a chamada opinião dos milenários é condenada, errônea, herética e judaica: logo o proferente segue os mesmos erros, e é quando menos suspeito de heresia e judaísmo.

Para que se veja o artifício desta conseqüência, é necessário que os milenários, própria ou impropriamente tomados, se distingam em três espécies. Os milenários propriissimamente e da primeira espécie são os que tiveram pôr cabeça a Cirinto, e foram condenados no concílio hierossolomitano, como verdadeiros hereges, com mistura de judaicos. Os milenários também propriíssimos e da segunda espécie, a que deu princípio S. Dapias, discípulo de S. João Evangelista foram muitos padres e santos antigos que tiveram alguns erros materiais, não condenados no concílio geral romano, como quer Barônio nem em outro algum concílio; mas geralmente reprovados pela comum estimação da Igreja.

Os milenários propriamente e propriissimamente, e da terceira espécie, são muitos santos, teólogos e expositores modernos que, impugnando de todo a dita opinião dos padres antigos, tomaram somente dela e dos seus fundamentos, o que contém doutrina sã, provável, e de grande glória de Cristo, e concorda com a sagrada escritura, e com revelações modernas de muitos santos, e vem a ser um estado de nova perfeição, e maior na última idade da Igreja, a qual em tendem os mesmos autores se descreve na última parte dos Cantares de Salomão - quibus positis - se descreve o artifício da sobredita conseqüência, respondendo a ela em forma, desta maneira: logo também o proferente é milenário: distingo; é milenário propriamente, ou da primeira espécie. que contém heresias; ou da segunda, que contém erros: nego; é milenário da terceira espécie, propriamente ou impropriamente, que contém doutrina sã, católica, e recebida de grande glória de Cristo, concedo.

As conseqüências do quarto gênero, são aquelas que de um príncipe católico se infere uma ou muitas conseqüências heréticas. Exemplo: o proferente diz e tem para si, que todo o cristão deve imitar a Cristo: logo é ditame e parecer do mesmo proferente, que os santos (os quais foram os maiores imitadores de Cristo) hão de ressuscitar antes da ressurreição universal, assim como Cristo ressuscitou antes dela. Até aqui os judeus têm para si, que o Messias há de trazer consigo aos patriarcas antigos ressuscitados; e os milenários dizem semelhantemente, que Cristo vindo a este mundo, há de ressuscitar os mártires antes da. ressurreição universal; logo o proferente tem erros dos judeus, e dos milenários. Sobre este assunto não direi palavra, só peço se pondere acerca dele, que se um princípio tão católico como dizer que todo o cristão deve imitar a Cristo se me inferem tais conseqüências, que será sobre tantas suposições assim referidas, tão alheias do fato do meu verdadeiro sentido, como da fé e doutrina que sigo.

PONDERAÇÃO 6. ª
ACERCA DAS RESPOSTAS

Sendo tantas, tão várias e tão terríveis as suposições referidas, e as conseqüências e censuras que delas e sobre elas se me tiraram e argüíram, quase posso afirmar, que a nenhuma tive lugar de responder, ao menos cabal e plenariamente, como agora peço se pondere pelas razões seguintes:

Primeira, porque as matérias são tantas e tão pouco tratadas, e envolvem tantas dependências, questões e suposições, e são tantas as dúvidas e dificuldades que sobre cada uma delas pode ocorrer ou argüir-se, que quase é impossível haver-se de explicar e satisfazer a tudo por papel, ainda que este fora muito largo, e ainda que as dúvidas e dificuldades se propuseram muito clara e descobertamente, por ser o papel um intérprete mudo, que só mostra o que leva escrito, sem poder explicar ou distinguir, nem responder ao que nele, dele, e contra ele se me interpreta ou argüi, o que falando se pode fazer, e sendo ouvido, que foi a causa por que eu representei ao conselho geral, me permitisse dar razão de mim verbalmente.

Segunda, porque pedindo muitas vezes que me fossem dadas ou quando menos lidas as proposições censuradas por suas próprias e formais palavras, nunca o pôde conseguir, argüindo-as somente das perguntas que se me faziam, e por esta razão ainda que as respostas se ajustavam à formalidade das perguntas, não se podiam ajustar à formalidade das proposições.

Terceira, porque as ditas proposições censuradas (como vi agora, que me foram lidas) pela maior parte não são proposições símplices, senão complexas, compostas de muitas proposições, ou eqüipolentes a elas, sem distinguir sobre qual ou sobre quais caiu a censura, donde se segue, que ainda que me fossem declaradas em próprias formalidades, não poderia eu entender quais eram os pontos censurados, como ainda agora os não entendo em quase todos, bastando-me só entender que as ditas censuras estão aprovadas, para; sem mais discorrer sobre elas, as aceitar em qualquer sentido, e sobre todos e quaisquer pontos a que se refiram.

Quarta, porque nas perguntas que se me fizeram nos exames, não podia responder senão ao precisamente perguntado, nem me era permitido dilatar-me nas respostas, com que deixava de dizer muitas coisas importantes à inteligência e descargo da matéria delas.

Quinta, porque os argumentos e instâncias das admoestações envolviam ordinariamente matéria nova, e não de menor força que as das perguntas; e estes ficaram ou só respondidos por termo: graves, ou totalmente sem resposta.

Sexta, porque o Tratado que compus nesta reclusão, como foi escrito tanto tempo antes dos exames, de nenhum modo podia satisfazer nem responder às coisas que se argüiam nela, por serem todas fundadas, como fica mostrado, em suposições alheias do fato e matéria de assunto, e de todo o pensamento e imaginação minha.

Sétima, porque ainda que desde o primeiro dia, e primeira sessão dos exames tanto que conheci das ditas proposições, pedi logo papel e tinta para, antes de outra notícia, fazer uma idéia breve em que declarasse mais o verdadeiro argumento do meu assunto, partes dele, e com que desfizesse a equivocação com que via confundir o império de Cristo com o do imperador e ministro do mesmo Cristo, e de sua Igreja, da qual equivocação ou confusão de pessoas e do império, se seguia um labirinto de enredos e conseqüências inexplicáveis; de nenhum modo se me concedeu o dito papel, e só me foi prometido para seu tempo, continuando por esta causa ás ditas conseqüências, suposições, e confusões, sem eu as poder bastantemente desembaraçar e declarar, por não dar o perguntado lugar a tanto.

Oitava e última, porque sendo tantos e tão dilatados os exames, e todas as perguntas deles armadas com tantos artifícios, e argüidas com tanta sagacidade e sutileza, como dos mesmos exames se vê, e depois replicadas e tornadas a instar com toda a força de razões e textos, e por pessoa de tantas letras, experiência, sobre ter antevisto matérias e os autores delas, e escolhido as maiores e mais dificultosas e perigosas, era eu obrigado a responder a tudo de repente que se me perguntava ou argüia sobre elas, sem emendar ou mudar palavra, estando destituído de todo o socorro de livros, e sem procurador com quem pudesse consultar um ponto, ou ele pudesse estudar por mim, sendo o meu cabedal tão limitado, como é notório, e havendo tantos tempos, que pela minha reclusão e antecedente enfermidade, estou tão remoto de todo o gênero de estudo, quanto mais do que era necessário para tanta variedade de matérias e controvérsias, que tocam e envolvem todo o gênero de escrituras.

Pelo que, e por tantas outras razões de incapacidade, quantas concorrem em mim mo estado presente, mão será maravilha que em alguma ou muitas destas respostas haja errado, por mais não saber nem alcançar, do que tudo me retrato e peço perdão, esperando juntamente da benignidade deste tribunal, que suposto haverem ficado tão defeituosas as ditas respostas por todas as causas sobreditas, e mui particularmente pela minha última desistência, se me supram e hajam por supridos todos os ditos defeitos.

PONDERAÇÃO 7.ª
ACERCA DAS DENUNCIAÇÕES

Discorrendo sobre os fundamentos com que podiam ser denunciadas coisas tão sem fundamento, como a da proposição ou proposições, de que ultimamente fui argüido, tendo feito menos reparo das antigas por sua matéria, tudo quanto se me oferece acerca de uma e outras, se reduz a ignorância ou a malícia dos delatores, posto que mais a malícia que ignorância, e assim entendo que o poderia provar facilmente, se me fosse dada notícia de quem os delatores eram.

Funda-se a presunção de ser por malícia nos muitos inimigos que tenho, e nas muitas ocasiões que tive, e circunstâncias que em mim concorreram para os ter, assim religiosos como seculares.

Quanto aos seculares, a mercê que me fazia o Senhor Rei D. João IV, o príncipe, e a rainha, fez meus capitais inimigos a todo os que de mais perto assistiam aos ditos príncipes, e procuravam o valimento e lugar que imaginavam lhes tirava o meu fora do paço; não era menor ocasião de grandes ódios o ruim despacho de muitos requerentes, que me pediam ajudasse suas pretensões no que, pudesse; e porque não podia quanto elas queriam, de amigos se tornavam inimigos. A este número também pertencem, ainda com maior razão, todos os embaixadores e ministros das embaixadas cujas cifras eu tinha, e sua majestade ordenava me dessem notícia de todos os negócios, e os não resolvessem sem ouvir o meu parecer, com o qual sua majestade ordinariamente se conformava, tendo-me os ditos ministros como sobre ronda de suas ações, e temendo á inteireza dos meus avisos e informações, pelo crédito que el-rei me dava.

Aos inimigos que tinha por meu respeito, se ajuntavam também os dos meus parentes, os quais vingavam muitas vezes em mim, o que não podiam neles, ou neles o que não podiam em mim, do que há muitos exemplos em Portugal, e no Brasil, por serem dos maiores ministros daquele estado.

No Maranhão, pelo zelo da conversão e liberdade dos índios, que eu pretendia, consegui geral ódio, não só dos moradores de toda aquela terra, senão também dos governadores e ministros que lá vão de Portugal, e de outros ainda maiores, que sem lá irem por vias públicas e ocultas, têm lá seus interesses. Fiados no poder destes interessados, se atreveram a me expulsar a mim e a meus companheiros, levantando-me para dar algum ser a tão feio excesso, e provando-me com muitas testemunhas, que eu queria entregar o Maranhão aos holandeses: se lá houvera santo ofício, pode ser que lhe não fora necessário irem buscar o falso testemunho tão longe.

Quanto aos religiosos, podem ser estes da minha religião, ou de outras, particularmente daquelas que têm maior emulação à companhia, e seus sujeitos: entre todas sou mais odiado, das que têm conventos no Maranhão, por me terem por inimigo descoberto, sendo a verdade, que venerando a todos os religiosos quanto merece o seu hábito, só me não podia conformar com a perniciosa doutrina que nos púlpitos, confessionários, e nos testamentos, seguem acerca do injusto cativeiro dos índios, que é o maior impedimento para a sua conversão.

E porque esta foi a causa por que El-Rei D João encomendou à companhia as missões daquela gentilidade, com a morte do dito rei trataram de se desafrontar deste que tinham por agravo, e foram eles os principais instrumentos da minha expulsão, seguindo-me sempre em toda a parte com o mesmo ódio, que nas mudanças da fortuna antes se farta, do que se compadece; mas quando faltaram estes acidentes particulares, ou encontros particulares, e outros semelhantes, bastava a aceitação geral com que era ouvido na corte, e lidos no mundo os meus papéis, para que os oficiais do mesmo ofício (que são os maiores sujeitos das religiões) lhes não pesasse de ver a minha doutrina abatida e mal avaliada, podendo também acontecer que tenham menos parte nesta dor os mesmos avaliadores. Deixo de representar e pedir a vossas senhorias o que neste escrúpulo pudera justamente, porque sei que a justiça e inteireza de todos os senhores que julgam as causas do santo ofício, tanto há de examinar em qualquer qualificação a verdade dos fundamentos, como a pureza dos ânimos, sendo fácil de conhecer nos movimentos da pena, se a move a caridade ou o afeto.

Nos religiosos da minha religião, são tanto interiores mais sensíveis os motivos da emulação, quanto de mais perto viam diferença com que el-rei me honrava, e os grandes me buscavam me deferiam, sentindo também naturalmente os pregadores antigos autorizados, que se desse aos meus poucos anos o título de pregado d'el-rei, que as suas cãs e talentos melhor mereciam, principalmente sendo eu de província estranha, e mais de província do Brasil, e se presumiu que pediria eu a el-rei a divisão das províncias, e sustentava sua majestade a persistir nela; chegara a tanto extremo o zelo dos ditos religiosos, que negociaram com o padre geral que me despedisse da companhia, como com efeito se tivera executado, se el-rei o não, proibira.

Diante de Deus julgo que o dito zelo foi fundado em amor da religião, e não em ódio meu; mas se acaso alguns dos delatores são padres da companhia, muito é para ponderar, que ouvindo-me alguma proposição de que fizessem escrúpulo, não tivessem zelo para me advertir logo que reparassem no que dizia da religião, e que tivessem zelo para me denunciarem ao santo ofício!

Mas quando as denunciações não fossem motivadas do ódio ou malícia, podia facilmente ser que fosse do que acima chamo ignorância, e vem a ser a desatenção com que muitas pessoas, ainda que sejam doutas, assistem nas conversações, e na apreensão cor que geralmente os homens ou trocam a formalidade das palavras, ou a interpretação, e entendem em diversos sentidos do que são ditas, do que temos quotidianamente experiência os pregadores, a quem os mesmos que nos querem louvar, repetindo-nos o que dissemos, no levantam mil falsos testemunhos, dizendo-nos a nós mesmos outra coisa muito diversa do que temos dito: nascendo naturalmente este erro da forma do juízo de cada um, em que se recebe o que se ouve; se isto acontece em um sermão aonde um só fala, e todos estão atentos, que será em uma conversação, bastando que se não oiça um dizer para parecer que se afirma o que somente se refere, estando mais exposta a este perigo a conversação que for mais ordenada e discursiva. Da minha conversação sabem os que me tratam, que discorro sobre os pontos que se me oferecem, com ponderação das razões ou diferenças de conveniências, e das dificuldades e inconvenientes por uma e outra parte, sendo uma das disposições, premissas, e outras conseqüências, umas próprias, e outras impróprias, como sucede em todas as matérias que se disputam, e nos divertimentos de uma conversação, não é fácil que as apreensões sejam tão firmes e atentas, que não discrepem em qualquer palavra do sentido, ou disposição dela, sendo a dita discrepância como a dos botões, que basta arrancar-se um, para ficarem os mais fora da sua casa; assim me consta com toda a evidência, que sucedeu na conversação e denunciação do Porto, e da mesma maneira podia ter acontecido em quaisquer outras. E também além do ódio poderia ter sua parte a inclinação natural, que sempre nos portugueses pende para o pior.

PONDERAÇÃO 8.ª
ACERCA DO RÉU

Esta última ponderação, o fora melhor fazê-la outrem, do que eu, pois sou forçado nela a falar por mim, e de mim, mas o fazê-lo forçado, será desculpa das ignorâncias que disser, que assim S. Paulo a tudo o que disse, sendo tão verdadeiro, quando obrigado a falar de si se valeu da mesma desculpa, dizendo: - quasi incipiens loquar vos me coegistis. De duas coisas me vi principalmente argüir nos exames.

A primeira é de suspeito na fé, a segunda de presumido, e começando por esta segunda argüição - que quero saber mais que os padres e doutores antigos - já disse que acerca da zona tórrida, e dos antípodas, ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem S. Agostinho, pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete, bem pode acontecer, sem maravilha, e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio, depois do discurso de largos anos, e sucessos de algumas profecias, que os antigos e santíssimos por falta de notícias não alcançaram, as alcance, Palas, Arias Montano, Lugunensi, Pôncio, Scherlogo, Mendonça; e outros muitos, os quais expõem muitas escrituras proféticas, sucedidas nestes últimos séculos, confessando que os padres antigos não puderam pela dita causa conhecer o sentido literal delas.

Assim que, quando fizera eu o mesmo, fora um daqueles que nem por isso são notados de presumidos; mas não é este o meu caso, porque ainda que me atrevi a navegar por um mar tão profundo, e por meio de uma cerração tão escura, como a das escrituras proféticas, fui seguindo o farol de tanto número de santos, e doutores antigos e modernos, quantos no princípio ficam enumerados, dizendo o que eles primeiro disseram, e querendo só reduzir a um discurso e volume, o que eles escreveram dividido em muitos lugares.

Confesso, com tudo que se me pode replicar, que ainda em seguimento de outros autores, não era esta empresa para um homem tão idiota, como eu agora tenho acabado de conhecer que o sou; mas esta culpa tiveram em parte meus prelados, os quais de idade de dezessete anos me encomendaram as ânuas das províncias, que vão a Roma historiadas na língua latina, e de idade de dezoito anos me fizeram mestre de primeira, aonde ditei, comentadas, as tragédias de Sêneca, de que até então não havia comento; e nos dois anos seguintes comecei um comentário literal e moral sobre Josué, e outro sobre os Cantares de Salomão em cinco sentidos; e indo estudar filosofia de idade de vinte anos, no mesmo tempo compus uma filosofia própria; e passando à teologia me consentiram os meus prelados que não tomasse postilha, e que eu compusesse por mim as matérias como com efeito compus, que estão na minha província, onde de idade de trinta anos fui eleito mestre de teologia, que não prossegui por ser mandado a este reino na ocasião da restauração dele.

Em Portugal continuei os mesmos estudos, com a aplicação que todos sabem, sendo mais morador da livraria, que da cela não prejudicando em nada aos ditos estudos as peregrinações de Holanda, França, Inglaterra e Itália, onde fui enviado por sua majestade porque sobre a notícia que tinha muito universal dos livros, sendo sempre bibliotecário em todos os colégios, pude ver as melhores livrarias do mundo, e tratar os homens mais doutos, e consultá-los no estudo primeiro, e estudar todo o gênero de controvérsia, nem só na paz, senão com as armas na mão, ajudando-me, não pouco, o mesmo conhecimento das terras e mares, para a exata cosmografia e inteligência da história profana, eclesiástica e sagrada, para a qual também me apliquei muito à cronologia dos tempos, ordem e sucessão das idades do mundo, da Igreja, e dos homens grandes, que nelas e nele floresciam, querendo conhecer os ditos homens pelas suas obras, e lendo-as para isso nas suas fontes, principalmente as dos santos padres e expositores da escritura, a qual passei por vezes toda, e mais particularmente os livros proféticos, insistindo sempre no sentido genuíno e real, e pretendido pelo Espírito Santo, sem me divertir nas folhas e nas flores (que é o estudo ordinário dos Portugueses), e procurando sobretudo a coerência de uns lugares com outros, de modo que todos se pudessem entender concordemente, sem contradição ou repugnância alguma em todo o texto sagrado.

Estas são as diligências que fiz em toda a minha larga vida, sendo por mar e por terra meus companheiros inseparáveis os livros, e estas são também as partes que eu lia e ouvia dizer se devia compor o bom intérprete das escrituras, donde resultaram as razões e aparências, porque eu, com pouca culpa, e outros com não pouca temeridade, se enganaram comigo, entendendo que na minha insuficiência havia capacidade para uma obra que tanto excedia a limitação do meu cabedal e talento.

Quanto às suposições de fé, depois de dar infinitas graças a Deus por me chegar a estado em que era necessário dar razão de mim em tal matéria, peço aos senhores inquisidores sejam servidos, primeiro que tudo, de se informarem dos procedimentos deste indigno religioso, principalmente no tempo em que escreveu o papel de que se tomam estes fundamentos, para que julguem ao menos se o rigor da sua vida, e o seu zelo da disciplina religiosa, e do culto divino da propagação da fé, e da salvação das almas, da reformação dos costumes, da freqüência dos sacramentos, da promoção à piedade e de assim entre os portugueses, como infiéis, índios, e outros, eram ou podiam ser de homem que não amasse a Cristo, nem cresse na sua fé? E se outrossim, eram ou podiam ser de homem que não amasse a Cristo, os assuntos de seus sermões, e matéria e eficácia deles, e as doutrinas de todos os domingos, uma que fazia na matriz aos índios na sua língua, e outra aos estudantes e portugueses no seu colégio, a que concorria todo o povo, e as confissões gerais, e mudanças de vidas que resultavam das ditas doutrinas e pregações, e dos livros espirituais, principalmente da diferença entre o temporal e eterno, de que levei muitas a este fim, que repartia e fazia repartir aos que eram capazes daquela lição; e se era de homem que não amasse a Cristo, nem cresse na sua fé e contínuo socorro de todos os pobres, que são neste mundo os substitutos do mesmo Cristo, aos quais chegou a dar-lhes a sua própria cama, dormindo daí por diante em uma esteira de tábua, sem jamais se negar a pobre, coisa alguma que houvesse em casa aonde ele se achava, tendo dado a mesma ordem a todas as outras?

E porque naquelas terras não havia botica, a mandava ir todos os anos deste reino, a grandes despesas, para a fazer comum de todos os enfermos, assim pobres, como ricos, procurando e ajudando a que se fizesse um hospital para os soldados que morriam ao desamparo, solicitando as causas dos presos, e intercedendo por eles, e livrando muitos, e mandando à cadeia muito freqüentes esmolas, e informando-se dos párocos e dos confessores, das necessidades que havia ocultas, as quais remediava também ocultamente, e com maiores socorros do que se podia esperar de quem professava pobreza? Ou se era de homem que nem cresse, nem amasse a Cristo, o cuidado e a vigilância, e as vigílias e indústria que tinha, para que nenhum gentio ou catecúmeno morresse sem batismo, nem algum batizado sem confissão, indo muitas vezes quatro e seis léguas a pé, e muitas vezes por quinze e vinte, atravessando bosques e rios, sem ponte nem caminho, caminhando de dia e de noite para confessar a um índio enfermo? E posto que nem as suas forças, nem as suas virtudes eram para outros maiores trabalhos, ao menos fazia que os empreendessem seus companheiros, indo alguns deles distância cinqüenta léguas, e sessenta, a acudir a um moribundo, só na dúvida de se poder achar ainda vivo, posto que se afirmasse estaria já o índio morto, como verdadeiramente se achava: e porque as distâncias e as necessidades eram muitas, e os sacerdotes poucos, compus um formulário breve, com todos os atos com que em falta do sacramento da penitência, se pudesse uma alma pôr em graça de Deus, escrito pelas palavras mais substanciais e breves, e de maior eficácia, assim na língua portuguesa, como na geral dos índios, para que qualquer pessoa nos casos de necessidade, pudesse suprir a ausência de sacerdotes.

E outra segunda parte na mesma forma, para poderem administrar o sacramento do batismo, e dispor para ele nos casos e termos mais apertados, a qualquer gentio; e outras semelhantes indústrias e prevenções, para que nenhuma alma se perdesse. E será finalmente de homem que não cresse em Cristo, nem amasse a Cristo, a constância, a que outros chamam pertinácia, com que tanto instou e trabalhou para arrancar por todas as vias daquele país o pecado universal, e como original dele, dos cativeiros injustos dos índios, sem embargo de ter contra si todos, não só seculares, senão eclesiásticos; e tomando a Portugal sobre esta demanda, e embarcando-se para isso em um tal navio, que no meio do mar se virou, onde tivera acabado os seus trabalhos, se Deus para outras maiores o não livrara quase milagrosamente?

E posto que o Demônio nesta empresa parece prevalecia, não deixou contudo o bom zelo de alcançar contra ele na mesma batalha muitas importantes vitórias; sendo a primeira o vigário da matriz da cidade do Grão-Pará, cônego da sé d'Elvas, o qual deu liberdade por uma escritura pública, a mais de sessenta escravos, com grande escândalo de suas ovelhas, granjeando com esta obra o indigno instrumento dela, o ódio de todos os homens, mas ganhando aquelas e outras almas para Cristo, porque e pelas quais, em tantos conflitos se viu por mar, e por terra, e expôs tantas vezes a vida às setas dos bárbaros, e à fúria dos elementos, sem bastarem estas demonstrações não sendo feitas no seu cubículo, senão na face do mundo, para o não argüirem de inimigo de Cristo? Não cuidavam assim os que lhe ouviam as práticas dos passos da paixão de Cristo, que ele introduziu na igreja de S. Luís do Maranhão, repartidos por todas as sextas-feiras da quaresma, sem que nenhuma houvesse, em que não fosse necessário acudir com remédios a muitos dos ouvintes, uns porque desmaiavam, outros porque abafavam de dor e de lágrimas, mas ainda era maior o fruto, e muito conhecido de uma história ou exemplo de Nossa Senhora, que também introduziu e pregava todos os sábados bem de tarde, a que concorria com grande devoção e expectação toda a cidade, introduzindo assim mesmo na dita igreja todos os dias o terço do rosário, de que ele era capelão, e não só vinham rezar os estudantes e meninos da escola, por obrigação, e para bem se costumarem, mas também se achava ordinariamente à mesma devoção, o governador, ouvidor-geral, provedor-mor da fazenda, o vigário-geral, o da matriz, e outras pessoas principais, sendo muitas as famílias que no mesmo tempo faziam o mesmo em suas casas, rezando pais, e filhos, e escravos, em um coro; e as mães, filhas, e escravas, em outro seguindo em tudo a forma a que eram exortados.

Isto é o que obrava o réu em a mesma terra, e no mesmo tempo em que foi escrito o papel de que se inferem as conseqüências porque e chamado ímpio e blasfemo; mas supostas as coisas referidas, e outras mais interiores (que se calam e passaram no Maranhão) em Coimbra estão os padres Francisco da Veiga, Jácome de Carvalho, e José Soares, que podem testemunhar neste caso, e estão em Portugal também o Dr. Pedro de Melo, Baltasar de Sousa Pereira, e o Dr. Jerônimo Cabral de Barros, governador, e capitão-mor, e sindicantes que foram naquele tempo e estado, meus capitais inimigos (e Deus o mundo sabem o porquê) aos quais sem embargo disso ofereço por testemunhas do mesmo e ao licenciado Domingos Vaz Correia, vigário-geral que foi muitos anos e o era naquele tempo do Maranhão, e os mestres pilotos e marinheiros que de lá me trouxeram duas vezes, os quais dirão, como as primeiras rações da minha mesa, ou do meu refeitório eram de todos os passageiros pobres, que em vinte e duas vezes, que me tinha embarcado, tomei sempre à minha conta.

E como sendo roubados e lançados na ilha Graciosa em número de onze pessoas, eu me empenhei para remediar a todos, dando a quatro religiosos do Carmo que ali vinham, hábitos e toda a roupa interior, e a todos os mais camisas, sapatos e meias, e a outras pessoas, vestidos que lhes eram necessários, e com escolher de entre os marinheiros um homem de respeito, e outro dos passageiros, lhes entregava sem limitação o dinheiro necessário para sustento de todos, em todo o tempo, que foram dois meses que nos detivemos na dita ilha, e na Terceira, aonde dei a todos embarcação e matalotagem de biscouto e carne, e pescado para quarenta dias, por serem os ventos contrários, com que passaram ao reino; e assim os ditos marinheiros e passageiros desta viagem, de que era mestre Fulano Soeiro, vizinho de Lisboa, como os da última de que era mestre Fulano Pontilha, vizinho de Aveiro, dirão também como nos ditos navios pregava todos os domingos e dias-santos, quando o mar e o tempo dava lugar, dizia missa, e havia muitas vezes confissões e comunhões, e várias doutrinas entre a semana, e lição da vida de santos; e todos os dias pela manhã o terço do rosário, e à tarde a ladainha de Nossa Senhora, a que ninguém faltava, e depois dela meditação para muitos que se achavam a ouvi-la, e à noite exame de consciência para todos, tudo com grande silêncio, ordem e campa tangida, como se fora convento ou noviciado de religião.

E o mesmo se observava em qualquer canoa de missão, sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil, e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do padre geral, quando me mandou os seus poderes para que desse forma à missão, dispondo e ordenando nele tudo o que se havia de guardar, assim quanto à observância religiosa dos missionários, como no pertencente à conversão dos índios, as quais regras deduzidas em mais de 180 capítulos, foram todas aprovadas em Roma, sem se acrescentar nem diminuir palavra, e delas há em Portugal algumas cópias, de que se poderão ver os errados ditames do meu espírito e zelo da religião. Mas vindo ao particular da fé: de idade de dezessete anos Fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos gentios, e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola, que são os gentios cristãos boçais daquela província: e porque para este ministério me não era necessário mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso, nem teologia, e cedia dos graus da religião, que a eles se seguem. E posto que os superiores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a obrigação do voto, e o padre geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir nele, até que ultimamente o consegui, indo-me para o Maranhão tanto contra a vontade d'el-rei e do príncipe, como é notório, levando e convocando de diversas partes da companhia para a mesma missão, mais de trinta religiosos de grandes talentos, com os quais trabalhei por espaço de nove anos, navegando neste tempo água doce e salgada mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos, sempre a pé, favorecendo Deus tanto o fervor daqueles operários, que já a missão e a fé estava estendida em o distrito de seiscentas léguas, que tantas contei eu, e andei desde a serra de Ibiapaba até o rio de Gapoios, sendo quatorze as residências em que assistiam religiosos, acudindo daí a diversas partes, e havendo algumas em que só os batizados inocentes em espaço de quatro anos passaram de seiscentos, além de muitos adultos batizados - in extremis - para os quais, e para outros que mais devagar se iam catequizando, compus ao mesmo tempo com excessiva diligência e trabalho, seis catecismos que continham em suma todos os mistérios da fé e a doutrina cristã em seis línguas diferentes; um na língua geral da costa do mar, outro na dos nhengaíbas, outro na dos bocas, outra na dos juramiminos, e dois na dos tapuias, tendo-se levantado e edificado de novo todas as igrejas das sobreditas residências, e outras muitas, servidas e ornadas todas pela indústria de quem escreve este papel, porque a todas dava vinho e hóstias para as missas, e cera branca para os dias principais, sendo levadas todas estas coisas deste reino de Portugal, porque naquelas terras as não há; como também iam de Portugal todos os ornamentos, uns ricos e outros decentes, e os sacrários e os altares portáteis, os cálices e as custódias maiores e menores, aquelas de grande majestade, cruzes, castiçais, alâmpadas, turíbulos, alguns de prata, e os mais de latão, muitos sinos, muitas imagens de Cristo, e de Nossa Senhora e de vários santos, umas de pintura para os retábulos, e outras de relevo estufadas, assim maiores para os altares, como menores para as procissões, para mostrar aos gentios, muito inclinados aos seus bailes, que a lei dos cristãos não é triste.

E assim mesmo todo o aparato dos batismos para se fazerem com grande pompa, necessária igualmente aos olhos da gente rude que só se governa pelos sentidos, muitas resmas de papel, tintas, e latas para os sepulcros, e imagens da paixão para as procissões da quaresma e semana santa, que tudo se introduziu desde logo para ficar mais bem fundado e estabelecido entre aqueles novos cristãos, sendo matéria de grande devoção ver derramar sangue por amor de Cristo e vestidos de disciplinantes à portuguesa, e muitos daqueles mesmos, que poucos meses antes de fartavam de sangue e carne humana, sendo raro o que naqueles dias não fizesse esta penitência, e para verem da mesma maneira com os olhos o mistério do nascimento de Cristo, cuja solenidade fazia celebrar com diálogos na sua língua representados por seus próprios filhos.

Mandava também ir de Portugal as imagens do presépio, e outras curiosidades daquela festa, de que se paga ainda a gente de maior entendimento; vários ternos de charamelas e flautas para maior solenidade das missas, as quais já alguns dos índios têm aprendido a cantar em música de órgão, e ajuntando-se a esta despesa, mais chegadas ao culto divino, outras ordenadas ao mesmo fim, que são as que lá chamam resgates com que se conciliam os ânimos dos bárbaros, e vem a ser grande quantidade de machados, fouces de roçar, facas, tesouras, espelhos, pentes, agulhas, anzóis, e de tudo isto milheiros levados com o demais de Portugal, muito pano de algodão para cobrir, ao menos decentemente, as mulheres convertidas; e outros vestidos de panos de cores alegres para os maiores ou régulos das nações; nas quais coisas todas, em duas vezes que fui ao Maranhão, em nove anos que lá estive, despendi com aquela nova cristandade mais de cinqüenta mil cruzados, pela valia da terra, sendo muito maior o cuidado e desvelo, que o valor, para que se julgasse se foi demasiado empenho com Cristo e a sua fé, para quem se diz que espera outro Messias.

E por que não pareça muito ou a quantidade ou quantia da despesa, esta se tirava de quatrocentos mil-réis que o Senhor Rei D. João me deu para este fim, situados nos dízimos do Brasil, donde vinham em açúcares, livres de direitos, e do meu ordenado de pregador d'el-rei, e das esmolas de meus parentes, que só para isso lhas aceitava, e de empenhos e dívidas que fazia, de que ficava por fiador o padre procurador do Brasil, e principalmente da grande e contínua liberalidade com que el-rei em sua vida, e a rainha por sua morte, assistiam àquela missão, não só por via da junta de propagação, senão por mercês e ordenados particulares.

Mas o que muito se deve notar é que a aplicação das coisas sobreditas, toda era e vinha a ser à custa da caridade e mortificação dos missionários, os quais comendo farinha de pau, bebendo água, e vestindo algodão tinto na lama, tiravam de si e da boca o que tinham por mais bem empregado no culto divino, e no socorro dos pobres de corpos das almas que iam salvar, sendo o maior trabalho e dificuldade de toda a missão, a cobiça insaciável dos que por cativar e vender os corpos, punham em risco as almas; e, para o fazerem mais livremente, e sem estorvo, chegar a prender sacrilegamente e desterrar aos que por amor das mesmas almas se tinham desterrado.

Mas agora sobre a impunidade que logram estarão muito satisfeitos desta sua ação, pois não consentiram que na sua terra pregasse a fé um homem a quem o santo ofício prendeu por crime contra ela, e tem por suspeito na fé.

Indo para o Maranhão, quis Deus que por uma tempestade arribasse o navio às ilhas de Cabo Verde, e conhecendo o desamparo espiritual delas, e de toda a costa de Guiné e Angola, escrevia daí apertadissimamente a sua majestade, metendo grande escrúpulo ao príncipe (que já ficava informado) para que se acudisse àqueles gentios e desamparados dos cristãos, de que resultara mais duas missões que ainda hoje se continuam com grande frutos, um dos religiosos da Piedade em Cabo Verde, outra de carmelitas descalços em Angola; e tornando depois a este reino a procurar o remédio (que depois foi causa da minha expulsão) com que se evitassem os cativeiros injustos, e se tirasse de uma vez no Maranhão este estorvo da conversão das almas, com o bem deles procurei juntamente o universal de todos os gentios, alcançando de sua majestade se informasse a junta da propaganda ou propagação da fé, de que sou deputado, pondo em prática com alguns senhores a congregação do mesmo fim, que pouco depois se instituiu em S. Roque, debaixo da proteção de S. Francisco Xavier.

Tornando em menos de um ano outra vez ao Maranhão, sobre novas instâncias de sua majestade, mas com novas leis sobre a conversão e liberdade dos índios, bastou só a fama das ditas novas leis, certificadas só com a firma de quem as veio procurar, para que muitos índios dos mais bravos e belicosos, se mandassem logo sujeitar à direção dos missionários, e por meio deles à obediência da fé e de sua majestade, havendo mais de vinte anos que por agravos recebidos faziam cruel guerra aos portugueses; e se a cobiça dos que tinham maior obrigação de guardar as ditas leis não fizera tão pouco caso delas, como das de Deus e da natureza, fora sem dúvida hoje aquela uma cristandade das mais florescentes e copiosas que teve a Igreja: contudo, enquanto com a vida se não se perdeu o respeito às suas ordens, houve lugar de se fazerem onze missões pelo sertão dentro até à distância de quinhentas léguas, sendo um dos missionários delas, que tinha obrigação de dar exemplo aos mais, este suspeito na fé. Nas quais missões não faltavam trabalhos e perigos, em que alguns dos missionários deram a vida, e trouxeram para o grêmio da Igreja muitos milhares de almas de diversas nações - potiguaras, tupinambás, cutingas, pacuias, poquis, maianas e anaias -, e se começava a introduzir a fé, e receber nos ticujuras e aronquis, que são dois grandíssimos reinos ou províncias, por onde também se abria o passo a outros muitos, sendo sempre maior a dificuldade e trabalho vencer a contrariedade dos portugueses, que a fereza dos índios e bárbaros gentios, isto é, quanto à fé destes, de que pudera fazer muito largas relações.

Quanto aos hereges, no tempo em que vivi e passei por suas terras me apliquei com toda a diligência ao estudo de suas controvérsias, tendo com eles batalhas quotidianas e públicas, por ser esta a sobremesa daqueles países, principalmente à noite; assistindo-me Deus com fortíssimos argumentos e evidentes soluções, que por não acrescentar suspeita de presumido, não digo que se não acham nos livros, e sempre pela graça divina com vitória da fé e honra da Igreja romana; e quando estive na mesma Roma, aonde tive também disputas, e convenci a um que entre eles era douto, e dispus um memorial para se apresentar à santidade de Inocêncio X sobre a conversão dos hereges do Norte, pelas notícias que eu tinha alcançado do que mais dificultava a sua conversão ou redução, o que se impediu com a repentina brevidade, com que o padre geral, a instância D'el-Rei de Castela, por seu embaixador o duque do Infantado, me mandou sair da cúria. Apliquei-me à apreensão de quatro índios canarins levados por desastre a Inglaterra desde a Índia, os quais tirei de entre aquela gente com dádivas, e os trouxe com muita despesa a Portugal para que se não fizessem hereges, como já se tinha feito outro seu companheiro, e um grumete português natural do Porto, moço de quinze anos, do qual tive notícia ia ferido de peste em um navio velho da mesma frota de Holanda em que eu tinha embarcado, e me passei ao dito navio, e assisti nele por mais de vinte dias, em que padeci três terríveis tempestades, até que morreu confessado nas minhas mãos para que os hereges o não pervertessem.

Quanto ao judaísmo não só procurei em Holanda e França reduzir a cegueira dos judeus em algumas conversações particulares (que pela ignorância deles não merecem o nome de disputas) mas diante dalguns, em Amsterdã, convenci ao seu mestre português, Manassés, e apelando para outro italiano, Mortera, também lhe pedi que me trouxesse, e que escolhesse o dia e lugar em que quisessem disputássemos, o que eles não fizeram, pelo tal Mortera não querer.

Mas agora poderá ser cuidem que me não pareceram bem as explicações do seu Manassés em ordem à conversão dos judeus; admirado de ver que os padres da companhia ingleses escrevem contra os hereges da sua Inglaterra, e os alemães contra os de Alemanha, os franceses contra os de França, e que os portugueses não escrevem contra ao judaísmo (que é a heresia de Portugal), determinei escrever contra eles o livro de que dei conta nesta mesa; mas porque me disseram em Lisboa pessoas inteligentes, que o santo ofício o não havia de deixar imprimir, desisti desta obra, e converti o zelo que Deus nela me tinha dado em a conversão dos gentios, despedindo-me totalmente da dos judeus, e dizendo com S. Paulo, e S. Bernardo: - Convertimur ad gentes.

Até dos turcos que só restam entre os inimigos da fé, me não esqueci, querendo ao menos tirar de entre eles aos renegados, e aos que estavam em perigo de o ser, dando a El-Rei D. João os meios com que isto se podia conseguir, com pouco dispêndio da fazenda, e grande utilidade da navegação, pois o reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há mais cativos em Barberia.

E posto que o alvitre e meios foram muito aprovados de sua majestade, que lhe chamou inspirados pelo Espírito Santo, impediu-se a execução por outros acidentes, e porque com a minha ausência não houve quem o intentasse ou instasse: assim que, estes e outros semelhantes desserviços, são os que têm feito e procurado fazer à fé de Cristo este outra vez tão indigno religioso, que sobre este merece o nome de ímpio, de sacrílego, blasfemo, e outros mais feios e de maior horror.

Agora me lembra, que não só no Maranhão, mas na ilha Terceira, S. Miguel, e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pegado esta devoção a quase todos os navios mercantes, e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos me disseram, que é novo argumento do ódio que tenho a Cristo, e aos mistérios da sua vida, paixão e glória, e também a sua santíssima Mãe, minha única advogada e senhora nossa.

Contra tudo isto se me opõe, que sou favorecedor dos judeus, e se me prova com os dois papéis que antigamente fiz, e com ir a Roma e Holanda a procurar-lhe sinagogas, e serem admitidos neste reino, o que tudo é sem fundamento, e uma mera fábula do vulgo, a quem eu não havia de dar satisfação, escrevendo pelas esquinas de Lisboa os negócios a que era enviado por El-Rei: quais foram os negócios de Roma, pode dizer o senhor arcebispo eleito de Lisboa, a quem se deram as mesmas instruções, quando no mesmo tempo esteve nomeado embaixador extraordinário de França; e quais fossem os mesmos de Roma e Holanda, e todos os mais, dirá o secretário d'estado Pedro Vieira da Silva, por cuja mão corriam todos: mas porque se poderá imaginar, que este fingido negócio dos judeus fosse ainda mais secreto, o dr. Pedro Fernandes Monteiro pode dar notícia da verdade de tudo, porque ele era o secretário de uma cifra particular que eu tinha com sua majestade para algum segredo secretíssimo, se acaso o houvesse. A verdade lisa é, que acerca de cristãos-novos, além da perdição de suas almas, me doeram sempre duas coisas:

A 1.ª, a mistura do sangue; a 2.ª, a destruição do comércio: a este fim disse por muitas vezes a sua majestade, que, ou pusesse o comércio todo em cristãos-velhos, ou buscasse remédio a que os interesses dele fossem de Portugal, e não de Holanda, Veneza, Inglaterra e França, por onde os cristãos-novos traziam divertidos os seus cabedais, e sobretudo que mandasse estudar meios com que os cristãos-novos não casassem com os cristãos-velhos, sob pena de todo o reino em cem anos ser judeu, assim como em cento e cinqüenta era já a metade dele.

E que os ditos meios os comunicasse sua majestade com os senhores inquisidores, e os resolvesse com eles, e os aprovasse pelo sumo pontífice, que é a maior comprovação de que não pretendi coisa que não fosse mui justa, justificada, e pia, quanto mais contra a fé: nem em mim se pode ou podia considerar razão alguma pela qual houvesse de favorecer os judeus; porque, pela graça divina, sou cristão-velho, e três cunhados e seus filhos, que são os parentes que só tinha, são também cristãos-velhos; não tenho nem tive jamais amizade com cristão-novo algum, exceto somente Manuel da Gama de Pádua, por ser o mercador a quem meu irmão remetia do Brasil os haveres do seu negócio, e açúcares, e por ser prebendeiro da capela que me pagava os meus ordenados de pregador d'el-rei. Nem os cristãos-novos me deram nunca coisa alguma, nem eu havia mister que eles me dessem, porque além de não ser curioso nem cobiçoso de ter (como é mais sabido na minha religião), para tudo que eu quisesse tinha parentes muito ricos, que me davam o que eu não queria aceitar, e sobretudo tinha a liberalidade d'el-rei, que sem limite punha em meu alvedrio a inteira disposição da sua fazenda a qualquer parte onde me enviava, não usando eu jamais desta largueza, antes restituindo aos ministros da fazenda real, até o que dos viáticos me sobejava, como de tudo pode ser boa testemunha Pedro Vieira da Silva.

Nem acrescenta nada a sobredita suspeita ou presunção, o haver eu comentado ou seguido as trovas do Bandarra, porque o tive sempre por cristão-velho, sem raça de moiro ou judeu, como ele mesmo afirma, onde perguntado, se é dos judeus ou dos agarenos, diz:

Senhor, não sou dessa gente
Nem conheço esses tais.

E por me parecer que as ditas trovas combinam grandemente com as profecias dos santos, e opinião dos doutores acima referidos, de cuja fé ninguém duvida, e finalmente, além das razões apontadas neste e em outros papéis, porque tão longe estava de ter o Bandarra por favorecedor dos judeus, que antes entendi sempre, sentia ele também muito o ver ou prever quão grande dano havia de fazer à fé e limpeza do sangue dos portugueses a mistura dos casamentos destes, e ainda a dos fidalgos com os judeus, pelo dinheiro dos dotes. Este é, ou cuidaria eu que era, o sentido daquela sua trova:

A linhagem dos fidalgos
Por dinheiro é trocada,
Vejo tanta misturada:
Sem haver chefe que mande,
Como quereis que a cura ande
Se a ferida está danada?

onde se queixa o Bandarra, que o sangue limpo (até o dos fidalgos) dos portugueses pelo interesse do ouro, se mistura com o dos judeus, e que não haja chefe ou cabeça que mande, e que impeça esta misturada, advertindo que a cura que o santo ofício aplica a esta ferida não é suficiente a evitar todo o dano à dita ferida, e vão lavrando e corrompendo todo o corpo do reino; e importa pouco que cada ano pelo santo ofício se queimem dez judeus, se pelos casamentos crescem dez mil: e estes os remédios que eu lhe procurava.

Finalmente, seja a última prova da minha fé, o rendimento do juízo, e segura obediência dela, ainda contra as evidências certíssimas da própria consciência; pois sendo assim verdadeira e indubitavelmente, e conhecendo com toda a interior certeza, que o sentido e disposição em que as minhas suposições foram interpretadas e censuradas, é totalmente diverso daquele em que as proferi, e do que supus nelas, e do que pretendi significar por elas, entendo e creio, contudo, que as ditas censuras são muito justas, e as ditas interpretações muito verdadeiras, e as aceitei, venero, e sigo muito de meu coração, sem embargo de se julgarem antes de eu perguntado nem ouvido; e se dilatei tanto tempo este inteiro e total rendimento, foi, não quanto à aceitação das censuras, que desde o primeiro dia foram aceitadas por mim, senão quanto à desistência das razões da minha inocência, e pureza da tenção em que tinha proferido as proposições censuradas, foi pela razão do escrúpulo, e que não tive quem me segurasse a ignorância, como procurei por todas as vias que me foram possíveis.

Conformando-me, finalmente, com o ditame do confessor, que foi a única pessoa com quem me pude aconselhar, o qual, depois de encomendar o negócio a Deus, resolveu que tinha obrigação de dar razão de mim, e evitar o escândalo; e quão pronto estivesse o meu juízo e o meu ânimo para o dito rendimento e desistência total, bem se viu no mesmo ponto em que tive suficiente razão para depor o escrúpulo, com a notícia de sua santidade haver aprovadas as ditas censuras, sendo certo que se na dita hora se me tivesse dado esta notícia, fora ela também a última de todas as dilações da minha causa, e se tivera evitado o escândalo da cristandade e do mundo, a cujas partes mais remotas, é sem dúvida terá chegado a notícia em dois anos, assim pela religião ser a mais conhecida e dilatada em todo ele, como também pelo nome da pessoa não ser o mais ignorado, principalmente entre aqueles a quem preguei a mesma fé, de cujo juízo sou réu e preso, os quais terão justa razão de duvidar se acaso lhes ensinei alguns erros contra ela, e se se poderão fiar certa e seguramente da doutrina dos outros padres da companhia, pois o que entre eles tinha o maior nome era tal, qual tinha espalhado a fama, e confirmado a prisão.

Mas estou confiado na misericórdia divina daquele Senhor - que mortificat, et vivifacat, deducit ad infero, et reduxit - que assim como a justiça do santo ofício achou motivos em mim, que conheço por mui justificados, para uma tão extraordinária demonstração, assim a piedade do mesmo sagrado tribunal acha motivos em si mesmo para restaurar o perdido, e satisfazer ao dito escândalo.

O Espírito Santo que tão pontualmente assiste às resoluções desta mesa, seja servido de guiar na decisão desta causa os juízos e ânimos de vossas senhorias, ao que for de maior serviço de Deus, e glória de seu divino beneplácito, que é a única lição em que estudo há mais de dezoito anos, e nestes dois últimos me quis Deus examinar e tomar conta dela, posto que eu lha não tenha dado tão boa como devia.

Mas sabe o mesmo Senhor, que se em mim não houvera mais que eu, sem os respeitos do hábito que tenho vestido, nem uma só palavra havia de ter falado em meu descargo, pondo toda a causa aos pés de Cristo crucificado, deixando-a toda à disposição da divina providência, desejando, e tendo por melhor e mais favorável despacho, o que fosse de mais descrédito e afronta, e de maior matéria de padecer, para em algum modo seguir as pisadas do mesmo Cristo, e participar dos opróbrios da sua cruz.








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Um comentário:

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    Comentário Único - demais descrições, na pág. devida - Genealogia Secreta de Jesus
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    Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.

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